terça-feira, 26 de maio de 2009

A proposta da Univesp: uma leitura crítica


César Augusto Minto (Professor na Faculdade de Educação da USP e 1° Vice-presidente da Adusp) e Maria Aparecida Segatto Muranaka (Professora no Departamento de Educação do Instituto de Biociências da Unesp-Rio Claro)

Este artigo apresenta uma breve análise do “Ante-Projeto de Proposta de Criação da Universidade Virtual do Estado de São Paulo – Univesp”, elaborado por uma equipe composta pelos professores: Carlos Vogt (coordenador), Waldomiro Loyolla, Geraldo Di Giovanni e Jocimar Archangelo
[i] e tornado público no início do segundo semestre de 2007. O documento tem 26 páginas e se estrutura da seguinte forma: Introdução (p. 1-2); Exposição de Motivos (p. 2-6), que contém os sub-itens Formação de professores (p. 3-5), Graduação Flexível (p. 5) e Considerações adicionais (p. 6); Concepção Estrutural (p. 7-8), com o sub-item O Modelo (p. 8-10); Operacionalização (p. 10-22); e Anexo 1 (p. 23-26), contendo 6 gráficos relativos ao desempenho de estudantes de Ensino Fundamental (4ª e 8ª séries) e de Ensino Médio (3ª série), em Língua Portuguesa e Matemática, comparando dados dos estados de São Paulo, Minas Gerais e do Brasil, aferidos por meio do Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB).

A Univesp, segundo o documento, seria “um consórcio acadêmico-tecnológico composto por universidades e instituições públicas do estado”,
[ii] que teria como objetivo oferecer “educação superior semi-presencial, pública, gratuita e de qualidade, ampliando, nos mais diferentes aspectos, a oferta de cursos de graduação, pós-graduação e de formação continuada no estado”. Conforme autoproclamado, “Em uma frase pode-se resumir este propósito por expansão com qualidade e inclusão social!”

A parte introdutória do documento enaltece o “elevado nível oferecido na área da educação a seus cidadãos” no estado de São Paulo, “o que, certamente, teve papel decisivo na evolução econômica e social de todo o estado”. Afirma que esse estado “apresenta os maiores índices de formação de pesquisadores e de produtividade em pesquisa de todo o país, como resultado do rigoroso exercício de uma exemplar política de amparo à pesquisa”, que contaria com a “indiscutível participação da FAPESP” (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Destaca, em especial, a qualidade do tripé – ensino, pesquisa e extensão – na Unesp, Unicamp e USP, cuja elevada disputa candidatos/vagas em seus vestibulares confirmaria “o alto nível oferecido na educação superior”. Mas lamenta o fato de que apenas “uma pequena parcela da comunidade estadual consegue o privilégio de desfrutar do ensino de qualidade oferecido pelas universidades públicas estaduais”.

Constatações à parte, salta aos olhos o teor do conteúdo explícito: 1) o acesso ao ensino superior público é visto como “privilégio”; 2) a concorrência no vestibular como critério de validação da qualidade do “serviço ofertado”; e 3) o auto-elogio da “boa política para poucos” como feito de pretensa e expressiva ação social. Vale dizer, segundo o documento prevalecem: o ensino superior como serviço (quando não mercadoria) e como um privilégio a ser usufruído por poucos, ao invés de ser um direito de todos; a adoção de critérios de mercado para balizar a qualidade das funções essenciais realizadas pelas universidades públicas; a exaltação de uma política elitista – seja para a educação superior pública, seja para a ciência e a tecnologia – no estado mais rico da nação, justamente aquele que pode e deve ostentar políticas sociais exemplares para todo o país.

Ainda na parte introdutória, o documento constata que o aumento de vagas nas universidades estaduais paulistas tem sido “pequeno e lento”, mas não sem antes frisar: “apesar do grande esforço desenvolvido no estado em busca do aumento do número de vagas oferecidas, quer seja pela implantação de cursos noturnos quer seja pelo aumento dos campi das universidades”. Em seguida, alega que, a exemplo de vários países desenvolvidos, “o uso acadêmico intensivo das tecnologias de informação e comunicação [TIC] pode ser a ferramenta para que o estado venha romper as barreiras físicas do oferecimento de ensino superior”. Curiosamente, em momento algum o texto menciona, por exemplo, o uso das TIC como uma ferramenta, um recurso desejável para incrementar e enriquecer os cursos presenciais.

Apesar da parca informação de acesso ao público, cabe reconhecer que o governo paulista já atribuiu o status de iniciativa oficial à Univesp. Assim, na “Mensagem n° 8”, encaminhada pelo Governador do Estado à Assembléia Legislativa em 14/2/08, encontra-se o projeto de lei que dispõe sobre o Plano Plurianual (PPA) para o período de 2008/2011, cuja Introdução contém um item sobre o Ensino Superior, onde se afirma:

As prioridades do governo paulista nos próximos quatro anos, no que diz respeito ao ensino superior, consistirão em ampliar a oferta de vagas e cursos superiores em áreas estratégicas para o desenvolvimento econômico e social do estado e do país, utilizando inclusive tecnologias e metodologias de ensino a distância, a serem concretizadas na implantação da Univesp [...] (DOE, Poder Legislativo, Suplemento, 20/2/2008, p. 4, negrito nosso).

Toda atenção será necessária, pois embora a utilização de “inclusive” pode induzir o leitor a crer que o uso das TIC seja apenas uma das alternativas para expandir o ensino superior público, não é lícito ignorar que as mesmas forças políticas que comandam o governo paulista há mais de uma década, quase um lustro, têm implantado à revelia da sociedade projetos como o “PEC-Formação Universitária” e o “Pedagogia Cidadã”
[iii], a título de pretensa graduação de nível superior para professores já efetivos na rede pública com formação de nível médio, cujas características podem ser assim resumidas: cursos experimentais, modulares, aligeirados e com boa carga didática à distância. Ao mesmo tempo, esses mesmos governantes não se preocuparam com a expansão do ensino superior presencial e de boa qualidade, o pouco que fizeram foi sem a garantia de recursos vinculados regulares. Portanto, não é descabido supor que desta vez o governo trabalha, em especial, com a idéia de que o ensino à distância é a alternativa privilegiada, senão a única, para promover a expansão do ensino superior público no Estado de São Paulo.

Vale dizer, as propostas (ações, na verdade) implantadas pelo governo se caracterizam como iniciativas do tipo “cavalo de Tróia”, cujos resultados dizem respeito mais à introdução de alternativas que interessam aos governantes e aos setores privatistas (por exemplo, as iniciativas já citadas no parágrafo anterior), como é o caso do ensino à distância que, adotado no estado de São Paulo apresenta forte efeito exemplar em termos de Brasil. Ou seja, não tem havido um planejamento estratégico para a área, sobretudo com previsão adequada de recursos financeiros (mas não só) para providenciar uma expansão do ensino superior público presencial e de boa qualidade para todos.

Ademais, cabe lembrar que às universidades estaduais paulistas tem sido destinado 9,57% do ICMS cota parte do Estado há mais de uma década, a despeito de terem realizado uma expansão, tímida sim, mas, entre outros motivos pela falta de recursos adicionais para garantir a qualidade das funções realizadas por essas instituições, a não ser eventuais recursos específicos para a construção de instalações, como é o caso da EACH (USP-Leste).
[iv]

Vejamos a seguir a parte relativa à “Exposição de Motivos”, cujos sub-itens contemplam os aspectos: “Formação de Professores”, “Graduação Flexível” e “Considerações adicionais”. O sub-item “Formação de Professores” tem início com a constatação da existência de por volta de 60 mil professores (dados de 2005) na educação básica paulista com formação apenas de nível médio, e afirma que “Por mais esforço que tenha sido feito no ano de 2006, certamente estes números continuam extremamente grandes e requerem uma atuação enérgica do estado com o propósito de melhor formar estes professores”. O documento relaciona essa formação com o baixo desempenho e a queda de rendimento dos estudantes aferidos por meio do SAEB, daí a alegação: “se faz urgente o oferecimento de condições para que venham a obter sua graduação, como passo importante para melhorar as condições de aprendizagem no estado”. Contudo, nada é dito sobre as condições estruturais de funcionamento das escolas de educação básica no estado, por exemplo, sobre bibliotecas e laboratórios funcionando a contento, ou seja desde a sua existência – de fato – até a ocorrência de manutenção e reposição de materiais, isto sem falar das aviltantes condições de trabalho, carreira e salário dos docentes.

Em seguida, o documento menciona um agravante na formação desses docentes: “é a exigência [sic] de que eles estudem sem se afastarem de suas atuais funções e de suas localidades”. Tal “condição” é motivo para afirmar-se no texto que: 1) “apenas com o uso de métodos e técnicas da chamada Educação a Distância (EAD) é que se pode conseguir atingir tão grande contingente de alunos dispersos em todo o estado e que têm os mais variados horários de trabalho”, sendo que, nestas condições, 2) “o uso da televisão educacional é o mais adequado”. Afora isso, o documento afirma que se acrescenta uma “demanda por reciclagem [sic] e aperfeiçoamento” advinda de professores já graduados, “para que possam desenvolver suas funções na atual sociedade da informação, formando cidadãos que sejam perfeitamente adequados ao século XXI”. Tal “demanda” é avaliada em cerca de 260 mil professores, “que precisariam ser atendidos para capacitação contínua e mesmo de pós-graduação lato e strito sensu”.

Ou seja, nas condições mencionadas, tanto para a graduação de professores como para a capacitação e a atualização contínuas de docentes já graduados, o ensino à distância é visto como “a” alternativa a ser adotada no estado de São Paulo, como já mencionamos. Além disso, o documento cita ainda que: “Neste contexto pode-se salientar, também, a grande necessidade de formação de gestores educacionais capacitados a dirigir as escolas de forma eficiente e moderna de modo a eficazmente formar os nossos jovens”. E, como se isso tudo não bastasse, o texto lembra igualmente que “mesmo para o grande contingente de professores já atuando em instituições de ensino superior também haveria a necessidade de oferecimento de oportunidades para que estes viessem a realizar cursos de capacitação e também de pós-graduação”, mas agora sem prever o público potencial. Vale dizer: fecha-se assim um pretenso ciclo virtuoso de graduação, capacitação e atualização virtual – como se o ensino à distância fora uma panacéia e, mais, definida por epifania!

No item “Graduação flexível” alega-se que “Outro motivo da atuação do estado na ampliação da oferta de educação superior vem da impossibilidade que muitos jovens têm de freqüentarem regularmente cursos superiores devido a restrições que até hoje não foram consideradas na oferta de vagas”. Tal impossibilidade adviria “tanto de condições geográficas quanto de condições temporais, sem esquecimento das questões sócio-econômicas”. O curioso aqui é que se recorre a essa alegação sem qualquer questionamento dos problemas constatados, mesmo após afirmar que “em várias áreas do estado não são oferecidas vagas públicas no ensino superior”. Por certo, é louvável que se atente para condições iníquas há muito contumazes e ainda insolúveis, mas cabe lembrar que a imensa maioria da população na faixa etária esperada para freqüentar esse nível de ensino vive em centros urbanos, sobretudo no estado de São Paulo; quanto às condições temporais e sócio-econômicas não é lícito ignorar que o poder público tem responsabilidade no que diz respeito à criação de alternativas para, no mínimo, amenizá-las, por exemplo adotando políticas sociais articuladas e exigindo dos empregadores, públicos ou privados, a “flexibilização” da jornada de trabalho das pessoas afetas a essas condições.

Isto é, também nesse caso a única solução apontada é o ensino à distância e não é licito imaginar que os proponentes da Univesp desconheçam que tanto a Constituição Federal de 1988 (CF/1988) como a Constituição do Estado de São Paulo de 1989 (CESP/1989) preconizavam a expansão das instituições públicas de ensino superior por meio de dois mecanismos complementares: 1) em locais densamente povoados e desprovidos da “oferta” desse ensino (no estado de São Paulo, por exemplo, a Baixada Santista; na capital, em especial a Zona Leste); e 2) ampliação de vagas noturnas.
[v] Não tendo observado a contento tais determinações, o poder constituído continua impune, pois inexistem mecanismos de sanção; ademais, decorridos os prazos previstos em lei, estes simplesmente não foram renovados! Assim, o problema persiste e a solução preconizada pelos governantes passa, como já o dissemos, necessariamente pela parafernália “moderna” do ensino à distância.

Ainda no item “Graduação flexível”, é citado “Um outro contingente que se encontra alijado das possibilidades de realizar cursos superiores [...] pessoas que desenvolvem atividades profissionais que requerem deslocamento geográfico constante”. Novamente, “Para estes, a única oportunidade de cursarem uma universidade [sic] é através do oferecimento de cursos com flexibilidade geográfica e temporal, onde mais uma vez a difusão televisiva e o uso de alguns métodos especiais de interatividade se caracterizam como uma única opção”. Embora o arrazoado – no que se refere ao alijamento dessas pessoas – seja convincente, questionam-se no contexto discursivo: 1) o fato de tal alijamento não ser “natural”, pois fruto de políticas de sucessivos governos; e 2) a insinuação do ensino à distância como “única oportunidade ou opção” e, ademais, pretensamente caracterizado como “curso universitário”. Nessas condições, em se tratando de propiciar a melhor qualidade possível para a eventual formação, deveria valer também para o ensino superior os mesmos critérios estipulados para a oferta de educação básica em situações emergenciais pelo parágrafo único do artigo 30 do Decreto n° 5.622/2005:

A oferta de educação básica nos termos do caput contemplará a situação de cidadãos que: I – estejam impedidos, por algum motivo de saúde, de acompanhar ensino presencial; II – sejam portadores de necessidades especiais e requeiram serviços especializados de atendimento; III – se encontram no exterior, por qualquer motivo; IV – vivam em localidades que não contem com rede regular de atendimento escolar presencial; V – compulsoriamente sejam transferidos para regiões de difícil acesso, incluindo missões localizadas em regiões de fronteira; ou VI – estejam em situações de cárcere. (BRASIL, 2005).

Seguindo a lógica adotada pelos formuladores da proposta de criação da Univesp, cabe a conjectura de que talvez o arremate do item “Graduação flexível” não pudesse ser diferente: “visto que apenas 9% da população nacional com idade entre 25 e 60 anos conseguiu completar o ensino superior”, propõe-se como solução para que esse problema se reverta ou, pelo menos, não se amplie, o atendimento de jovens “que se encontram na faixa etária de cursar uma faculdade”, seja por inexistência de instituições que ofereçam ensino superior público regular, seja por impossibilidades de ordem geográfica, temporal ou sócio-econômica: o ensino superior virtual.

Em “Considerações adicionais”, o documento afirma que há “outras motivações para a implantação de um programa de ampliação de [...] vagas públicas através do uso de tecnologias de informação e comunicação”; agora apresentado como “uma importante resposta social [sic] da política educacional do estado”. Tal “resposta” buscaria reverter, pelo menos em parte, o quadro desigual de atendimento desse ensino no estado, na medida em que na região sudeste apenas 18,6% das matrículas ocorrem em cursos superiores públicos. Neste segmento pode-se observar o uso da estratégia camaleão: ao invés de reconhecer que no estado de São Paulo apenas cerca de 10% das matrículas ocorre no setor público (e, ainda assim, basicamente somadas as matrículas em instituições estaduais e federais), os formuladores dessa proposta mimetizam os dados paulistas com os dos demais da região sudeste – maquilagem pura?

Mas o documento vai além, via recurso à repetição: “Outra vantagem inestimável seria a contribuição para uma melhor formação dos professores atuando no estado [...], o que indiscutivelmente trará, em curto e médio prazos, enormes benefícios sociais e mesmo econômicos, permitindo que se alcance uma população com melhor formação”. Ademais, segundo o texto, poderíamos “dispor de um aproveitamento educacional de competências nas instituições públicas [cabe lembrar: trata-se de um consórcio], podendo, a partir daí, criar e oferecer novos cursos com a contribuição de especialistas que se encontram dispersos”. Por fim, alega-se que a “real possibilidade de cooperação entre as universidades e outros órgãos públicos, certamente levaria estas instituições à abertura de uma nova frente de pesquisas ao se dedicarem ao estudo dos melhores métodos e técnicas para o desenvolvimento da educação mediada por tecnologias”. Tais “argumentos” dispensam ilações adicionais, mas por certo insultam a compreensão de qualquer leitor crítico.

No item “Concepção Estrutural” afirma-se que tal concepção baseia-se em dois pilares: 1) “significativa ampliação do ensino público, buscando a maximização da abrangência do oferecimento de cursos, tanto do ponto de vista de alcance populacional como do uso de tecnologias, técnicas e métodos educacionais”; e 2) “agregação de competências e recursos técnico-acadêmicos disponíveis em instituições públicas, o que sugere o aproveitamento consorciado de recursos humanos e técnicos”. O objetivo principal dessa estrutura seria “ampliar o oferecimento da educação superior pública estadual com qualidade e inclusão social”. Para tanto, propõe-se que “o projeto de estrutura da Univesp seja lastreado na cooperação das universidades públicas do estado com a TV Cultura atuando como poderoso meio de difusão”.

Neste segmento, afora a retórica saturada de tautologia, destaca-se o uso de “pilares” que, no contexto, pode evocar sustentação provisória e talvez mal ajambrada do que se afirma – ampliação do ensino público e agregação de competências e recursos técnico-acadêmicos das instituições públicas – pois, diga-se de passagem, expressam mais apropriadamente objetivos e não “alicerces”, que deveriam constituir bases, fundações e sustentação efetiva de estrutura. Mas, o aspecto que talvez mais chame a atenção é tomar, como “pilar”, o “uso de tecnologias, técnicas e métodos educacionais”; este sim um objetivo caro aos proponentes, quiçá a essência do projeto que, como dissemos, ostenta um matiz “cavalo de Tróia”. Afora isso, o aspecto novo aqui é a previsão de lastro “na cooperação das universidades públicas do estado com a TV Cultura atuando como poderoso meio de difusão”, o que sem dúvida é positivo, cabendo apenas questionar a adequação do que se difunde, pois formação, sobretudo inicial, exige tratamento pedagógico presencial, especializado e sistemático, que não se confunde com difusão de informações.

O sub-item “O Modelo” pega-nos de chofre: “Para o atendimento da proposta, há que se criar todo um modelo e um conjunto de métodos, para o oferecimento de cursos mediados por tecnologias de informação e comunicação”, pois esse arcabouço estrutural por certo é um dos pressupostos básicos, antes de qualquer eventual operacionalização de objetivos da Univesp, contudo, insinua-se que ele inexiste. O que segue: “Há que se considerar os aspectos [...] metodológicos de Educação a Distância, o planejamento e criação de cursos em consórcio de instituições, o efetivo oferecimento destes cursos e mesmo o gerenciamento deste oferecimento” não deixa dúvidas de que, se tal “modelo” já está constituído, o mesmo não se pode dizer das condições estruturais citadas, o que causa uma certa sensação de aventura fugaz, irreverente, embora não ignoremos que, neste mesmo segmento, fale-se em “abordagem preliminar”, ao mesmo tempo em que seu “cronograma tentativo” para implantação do projeto previsse “Realização do Processo Seletivo para os 4 cursos iniciais” já em fevereiro de 2008, o que não ocorreu.

A seguir, dois aspectos são tratados: “Criação de cursos” e “Oferecimento de cursos”, onde são citadas as etapas a serem desenvolvidas seqüencialmente, de acordo com o “modelo” adotado. No primeiro deles, aparecem em síntese: “abertura de edital para oferecimento cooperativo ou isolado”; apresentação dos projetos pedagógicos para o curso, onde devem constar o detalhamento metodológico, a linha de ação para os programas de TV vinculados a cada aula, os mecanismos e a logística de atendimento dos estudantes nas aulas de laboratório (se houverem) e as avaliações; escolha dentre as propostas por um conselho acadêmico-científico (áreas acadêmicas, técnicas e gerenciais); materiais instrucionais e programas-aula; e capacitação de tutores do curso.

Em “Oferecimento de cursos”: todos os tutores devem ser capacitados previamente, sendo cobrado dos concluintes que receberam auxílio o compromisso de atuar como tutores nos cursos futuros; cada programa-aula seria transmitido pela TV Cultura (datas e horários conforme cronograma), cada disciplina teria um programa semanal de 30 minutos (com características e horários estabelecidos para o curso), podendo ser repetidos em horários alternativos (resguardada a seqüência); caso aproveitem vários canais de baixa definição da televisão digital, os cursos podem ser ampliados; “poderá haver interação entre alunos e professor quando de transmissões ao vivo de aulas” [sic]; após cada programa, os estudantes têm atividades de estudo e interação a serem desenvolvidas semanalmente; e aulas periódicas de laboratório a serem realizadas nos pólos participantes de cada curso; as avaliações seriam contínuas, sendo as finais realizadas presencialmente nos pólos, de acordo com os cronogramas das disciplinas.

Por fim, o item “Operacionalização” contempla os seguintes aspectos: 1) Determinação do público-alvo, 2) Determinação do modelo operacional, 3) Potencialização e ampliação do modelo operacional, 4) Criação da infra-estrutura sócio-política e arquitetura institucional, 5) Ações iniciais de implantação do projeto, e 6) Cronograma.

Em “Determinação do público-alvo”, o documento afirma: “espera-se que inicialmente se atenda uma necessidade premente que é a formação, capacitação e aperfeiçoamento de professores do ensino infantil [sic], fundamental e médio, educação de jovens e adultos, e educação especial”. E sugere contemplar, também de início, as seguintes áreas: “Formação Pedagógica; Linguagens (Língua Portuguesa, Matemática, Língua Inglesa, Informática); Ciências (Física, Química, Biologia); Cultura Humanística (História, Geografia, Literatura)”, com privilégio dos “cursos de Formação Pedagógica [e] Letras-Língua Portuguesa, Letras-Língua Inglesa e Matemática”. Duas preocupações: 1) trata-se de pretensa formação inicial em nível superior, que deve ser necessariamente presencial (FÉTIZON e MINTO, 2007); e 2) no caso do estado de São Paulo, parece-nos que a premência maior seria a formação presencial na área de Ciências (Física, Química e Biologia). Consideramos ambas muito pertinentes.

Neste mesmo segmento, considera-se que “Ainda na primeira fase de implantação do projeto, deveriam ser oferecidos alguns cursos de pós-graduação lato sensu e MBAs, como forma de atender à demanda específica, mas não exclusiva, de professores já portadores de cursos superiores e interessados em evolução profissional”, sugerindo: “MBA em Gestão de Instituições Públicas de Ensino, Especialização em Docência no Ensino Superior (para não licenciados), Especialização em Educação de Pessoas com necessidades especiais”. Num segundo momento, sugere-se a ampliação de “cursos superiores e pós-graduação em variadas áreas, [...] também para a formação de profissionais de uma maneira geral”. Ademais, o texto apresenta também uma meta de atendimento: “alcançar, em um período de 3 anos, um público-alvo de aproximadamente 60 mil professores, melhor capacitando os responsáveis pela educação da atuais e próximas gerações de crianças paulistas”. Ou seja, conforme percorremos o documento fica cada vez mais claro o objetivo central da Univesp – implantar cursos de pretensa formação, em todos os níveis, via o recurso às TIC, o que é inadequado do ponto de vista de política pública, sobretudo num estado com estrutura razoável de cursos presenciais de qualidade, que precisam sim ser expandidos por meio das três universidades estaduais, com estrutura e financiamento adequados.

No sub-item “Determinação do modelo operacional”, alega-se que tal modelo “busca dar uma visão geral das bases para as estratégias de aprendizagem a serem adotadas”, sem perder a oportunidade de frisar que na “educação semi-presencial [sic] sempre se busca mais que o simples aprender e sim alcançar-se o apreender, levando o aluno à apropriação tanto do conteúdo como do processo”. Subjaz neste trecho uma defesa incondicional do ensino à distância, aqui travestido de “semi-presencial”, evocando uma contraposição ao ensino presencial, o que não faz sentido, mas como já citado anteriormente, é curioso que alternativa tão virtuosa não seja prevista para complementar o ensino presencial – seria mero esquecimento? Em seguida o texto descreve as relações “aluno-conteúdo, aluno-professor/tutor e aluno-alunos”, salientando que é necessário prover-se também “uma relação do tipo aluno-administração onde serão trabalhadas as questões administrativas e de secretaria do curso”.

Em “Relação aluno-conteúdos”, alega-se que o modelo “é composto por duas vertentes que se completam”: 1) “programas-aula transmitidos pela televisão [TV Cultura]”; e 2) “acesso a conteúdos [...] disponibilizados através de diferentes meios de comunicação, desde o uso do correio até a internet”. Os programas-aula apresentariam “os principais conceitos, processos e aspectos motivadores do conteúdo em questão”, por meio da técnica televisiva mais adequada ao tema [exemplo: documentário], “sempre buscando transmitir a emoção do aprender e do saber” e, alternativamente, “promovendo uma interação síncrona” [exemplos: videoconferência ou web-conferência]. Já na segunda vertente tal relação dar-se-ia “através da interação com material instrucional [...] elaborado de forma a não privilegiar uma mídia ou meio de comunicação”. Além disso, poderiam “ser preparados materiais textuais ou pictóricos, e mesmo lúdicos, desde que concebidos adequadamente para as condições sócio-econômicas e culturais do público-alvo a que se destina”. Como se vê, segundo tal modelo relacional não há previsão alguma de contato direto estudante-objeto de conhecimento, a não ser talvez pela representação eventualmente filtrada por suas “condições sócio-econômicas” e, ainda assim, sob critérios arbitrados por quem concebe tais materiais.

Em “Relação aluno-professor/tutor”, alega-se que essa relação “pode acontecer de diferentes formas” [sic], explicitando de antemão uma divisão binária: o professor se responsabiliza pela disciplina, mas é o tutor que acompanha a aprendizagem. Aqui, o despautério tem continuidade com: “A primeira destas formas acontece quando da visualização do professor na televisão. [!] Isto já promove uma certa relação pessoal, do mesmo tipo da que acontece entre o espectador e um ator”. Mas, não pára por aí: “Embora esta interação seja de ‘mão única’ é nela que se busca a motivação do alunado pela aprendizagem”. Ora, aprendemos e ensinamos nos cursos presenciais de formação inicial sobre a importância de considerar, nos processos de ensino e de aprendizagem, o lastro cognitivo que os estudantes carregam consigo e a contextualização do objeto dado a conhecer etc. na interação estudante-objeto-professor, mas isso tudo parece ser remetido para as calendas gregas quando somos submetidos a tão desrespeitosas alegações.

Mas, na seqüência, o documento parece tentar redimir-se do “equívoco” anterior ao asseverar: “para que a aprendizagem seja continuamente orientada e incentivada, há que se criar uma estreita relação acadêmica entre alunos e professor”, menos mal... contudo, “É nesta função que atua o professor-tutor, acompanhando e orientando todo o processo de aprendizagem”, sendo que “O conjunto de tutores deverá estar continuamente disponível para atendimento dos alunos de maneira presencial [nos pólos] ou mesmo usando diferentes meios de comunicação [atendimento telefônico tipo 0800 ou pela internet]”. Cabe alertar para dois aspectos preocupantes: 1) essa “estreita relação acadêmica”, se houver, será com o tutor e não com o professor; e 2) o peso colocado no “ou” da última frase em destaque, embora afirme-se, com menor ênfase, que “O atendimento presencial nos pólos deve ser possível em horários pré-estabelecidos para épocas normais [?], e continuamente nos encontros presenciais nos pólos”. Seja como for, consideramos que o texto fala por si.

Sobre a “Relação aluno-alunos”, o documento menciona que a interação entre os estudantes “deve se realizar de variadas formas [sic], desde o encontro presencial para estudo por parte de alunos de uma mesma cidade, até aquela desenvolvida em grupos ou comunidades de estudo baseadas na internet”. Dos sub-itens todos, este é o que ocupou menos a preocupação dos elaboradores da proposta da Univesp, não apenas pela concisão textual, mas também pelo teor técnico de sua prescrição: “O sistema gerenciador de aprendizagem a ser utilizado no projeto deve prover tecnologicamente os ambientes virtuais de discussão, disponíveis de forma tanto síncrona como assíncrona”. Convenhamos, não parece haver sequer o desejo de promover uma interação humana mais solidária, que pudesse motivar relações de vínculo entre os estudantes, por meio de suas atividades cognitivas e sociais, ao contrário, emana das entrelinhas pressupostos por demais individualizantes.

Acerca da “Relação aluno-administração”, o documento prima pelo óbvio: “há a necessidade da preparação de detalhadas orientações de procedimentos administrativos para os alunos [supõe-se, pelos cursos]”, assim bem como “da criação de infra-estrutura adequada de atendimento aos alunos, o estabelecimento dos corretos e detalhados procedimentos e direcionamentos a serem adotados a partir das solicitações eletrônicas, ou pessoais, dos alunos [pelo lado administrativo]”. Para tanto, deve haver “uma contínua atualização dos funcionários a respeito dos procedimentos de atendimento das solicitações dos alunos”. Afora tais obviedades, o texto afirma que é “esperada grande dispersão geográfica dos alunos”, por isso prevê o provimento de “formas flexíveis para que haja a interação entre o aluno e as instâncias administrativas do curso e da universidade”, dentre elas, “a melhor forma de interação será a internet”, seja pelo acesso direto a “sistemas acadêmico-administrativos especialmente projetados” [?], seja “por meio de carta, telefone ou mesmo através da entrega pessoal da solicitação nos pólos”.

No sub-item “Potencialização e ampliação do modelo operacional” alega-se que decisões estratégicas tomadas desde o início ou com o andamento da implantação da Univesp criam possibilidades de potenciar os recursos e ampliar o projeto. O texto cita então algumas alternativas não excludentes: “criação de videotecas distribuídas; criação de site para visualização de aulas pela web; e canal digital para TV-Educação”. Sobre a primeira, argumenta-se que os programas-aula poderiam ser reproduzidos em DVD e disponibilizados nos pólos, mas adverte-se: “esta alternativa requer do aluno o deslocamento até o pólo, o que em alguns casos pode ser restritivo”. Sobre a segunda, afirma-se que o site, restrito aos alunos, “permitiria o acesso aos programas-aula através da internet a qualquer momento e de qualquer lugar, o que ofereceria grande flexibilidade”. Sobre a terceira, avalia-se o “uso de um canal de baixa definição de televisão digital” teria “grande impacto na amplitude a ser alcançada pelo projeto”.

A julgar pelo crédito depositado pelos proponentes da Univesp nessas alternativas de “potencialização e ampliação do modelo operacional”, fica a sensação positiva de que tais decisões estratégicas poderiam operar uma real democratização de recursos educativos por excelência, mas uma dúvida insiste em permanecer, corroendo os nossos neurônios: por que tal elenco (ou mesmo parte dele) continua não disponibilizado, por exemplo, para seres humanos que “estejam impedidos, por algum motivo de saúde, de acompanhar ensino presencial; sejam portadores de necessidades especiais e requeiram serviços especializados de atendimento; se encontram no exterior, por qualquer motivo; vivam em localidades que não contem com rede regular de atendimento escolar presencial; compulsoriamente sejam transferidos para regiões de difícil acesso, incluindo missões localizadas em regiões de fronteira; ou estejam em situações de cárcere [?]” (Decreto n° 5.622/2005, artigo 30, parágrafo único). Isto nos incita a propor a discussão pública e democrática dessas questões.

O sub-item “Criação da infra-estrutura sócio-política e arquitetura institucional” ocupa-se de explicitar que “Para a efetiva implantação deste projeto, há que se prover antecipadamente uma infra-estrutura que envolve aspectos políticos, sociais e acadêmicos”. Afirma-se que “é uma exigência crucial do projeto” o estabelecimento de pólos, pois “é neles que serão unicamente realizadas as avaliações finais de cada disciplina e onde os alunos poderão receber apoio pedagógico e administrativo, além de usarem instalações físicas de laboratórios e bibliotecas”. Fantástico! Digamos que a ordem de prioridades do projeto Univesp foi apenas invertida, na medida em que seria pressuposto de um projeto de fato educacional: acesso a bibliotecas e laboratórios (o que implica: existência, manutenção adequada, disponibilidade real); apoio pedagógico e administrativo (essenciais); e avaliação (que deve se realizar em processo, portanto não apenas “finais”).

Prevê-se que “Os pólos deverão ser estabelecidos em todos os possíveis locais disponibilizados por instituições públicas estaduais e municipais”, sendo que os pólos principais ou de primeira grandeza estariam localizados em todos os campi das três universidades públicas paulistas, o que alcançaria “30 cidades com significativa dispersão geográfica pelo estado”. Para tanto, convênios seriam realizados com as universidades, a Secretaria de Estado da Educação (SEE), e as prefeituras de municípios. Os estudantes encontrariam nos pólos principais: apoio pedagógico, que contaria com tutoria presencial, disponibilidade para uso de internet e recepção e reprodução de programas-aula já transmitidos pela TV Cultura, eventuais aulas de laboratório e utilização de bibliotecas; apoio administrativo, que corresponderia basicamente ao atendimento de secretaria de curso; e apoio de serviços, que proveria restaurante, cópias, enfim, os mesmos serviços disponibilizados aos estudantes presenciais dos campi. Por meio de convênio com a SEE, em tese, as escolas públicas estaduais (cerca de 5500 em 645 municípios) poderiam abrigar pólos para cursos de modo a atingir ampla abrangência geográfica. O convênio com prefeituras viabilizaria a implantação de pólos no âmbito de seus municípios na eventual ausência destes em escolas públicas estaduais.

Em “Ações iniciais de implantação do projeto”, o documento considera que, “pela grande dimensão deste projeto, é importante que sua implantação seja feita de forma gradual, como requerido pelo padrão de qualidade das instituições públicas estaduais”. Assim, afirma-se que a fase inicial de implantação deve corresponder à “criação da infra-estrutura física, humana e de sistemas para que a operação de oferecimento dos cursos possa se dar com qualidade desde o início”. Em seguida, o texto apresenta um elenco dos principais aspectos a serem trabalhados, acompanhados da previsão temporal “tentativa”: “Estabelecimento da parceria com a TV Cultura (ago. e set./07); Estabelecimento de convênios com as Universidades, Secretaria de Estado da Educação e Prefeituras (ago. e set./07); Criação de infra-estrutura e equipe de suporte pedagógico e suporte tecnológico para o desenvolvimento de cursos (ago. a out./07); Implantação de Sistema Gerenciador de Aprendizagem (out. e nov./07); Desenvolvimento do Programa de Capacitação de Tutores (out. a dez./07); Realização de processo seletivo de Tutores (dez./07); Realização do Programa de Capacitação de Tutores (dez./07 e jan./08); Capacitação de funcionários administrativos das universidades (jan. e fev./08); Realização do Processo Seletivo para os 4 cursos iniciais (fev./08); Início do oferecimento dos cursos iniciais (após fev./08)”.

À guisa de conclusão, após ter analisado passo a passo o ante-projeto de criação da Univesp, ficam algumas preocupações, cuja discussão é urgente, pois não faz sentido implantar projeto dessa envergadura sem antes respondê-las, sob pena de ao invés de solucionar entraves, acrescentar outros... Fica muito evidente que, de acordo com a ótica dos responsáveis pelo documento em questão (referimo-nos aos representantes do poder público que o encomendaram e não apenas às pessoas que o assinam, claro), o ensino à distância precisa ser implantado no Estado para prover pretensa formação inicial nos níveis de graduação e de pós-graduação e no mais curto tempo, cabendo relembrar que em momento algum menciona-se o potencial desse ensino se utilizado de forma enriquecedora e complementar ao ensino regular presencial, o que resta incompreensível.

Assim, é oportuno enumerar alguns aspectos que julgamos preocupantes e exigem discussão ampla e democrática: 1) a indistinção entre ensino à distância e mera utilização de técnicas de informação e comunicação nas atividades didáticas; 2) a confusão entre conhecimento e acúmulo de informações (ADUSP, 2005); 3) a imisção entre formação e treinamento (MINTO e SILVA, 2001; MINTO e MURANAKA, 2001); 4) a ausência de acervo bem fundamentado sobre metodologias e técnicas de ensino à distância para efetiva formação crítica e autônoma, se é que isto é possível; 5) a adoção do ensino à distância – como política pública – de modo tão indiscriminado; e 6) a dicotomia entre ensino e pesquisa, em especial na educação superior. A discussão dessas questões, entre outras, deve anteceder qualquer tentativa de implantar o ensino à distância, sobretudo como política pública e para pretensa formação educacional.

Ademais, cabe lembrar que documentos anteriores (da mesma procedência) a este aqui analisado
[vi] estimaram “custos totais de R$ 158,5 milhões nos primeiros seis anos de implantação do projeto. Ao final desse período, calcula que o número de alunos formados em cursos de graduação e especialização chegue a 52 mil (já descontado um índice de evasão de 10%), havendo outros 27 mil em atividade nos cursos. Assim, ‘o custo total de cada aluno formado é próximo de 3.000 reais’”. (ADUSP, 2007). O curioso aqui é o “argumento” não explícito em todo o texto analisado – o do “custo-benefício” ou, dito de outra forma, o do barateamento dos custos – que, por tudo o já aqui abordado, revela uma precaução oficial, cuja omissão por certo será objeto de avaliação cuidadosa do leitor.

Enfim, fica-nos uma forte sensação de que a adoção do ensino à distância – tal como está proposta – pode constituir-se numa aventura irresponsável, com grande chance de resultar em formação de qualidade diferenciada (em si, altamente questionável) para determinados setores sociais, que constituem a maioria da sociedade paulista (e não só para os setores já tradicionalmente excluídos), em contraposição à desejável e necessária formação presencial em nível de graduação e de pós-graduação, promovida por meio das três universidades estaduais. Se isto acontecer, no limite, o ensino presencial que conhecemos hoje estaria condenado a ser enterrado em caixão de tapiá,
[vii] justamente para que dele não sobrasse vestígios no mais curto tempo. Exceto, é claro, sua manutenção restrita a “centros de excelência” encarregados de prover os quadros que comporiam a elite dirigente – intelectual e econômica – do estado e do país. É isso que as sociedades paulista e brasileira almejam?




Referências
ADUSP (Diretoria da). Educação a Distância: a pá de cal na Formação? In: Conselho do ANDES-Sindicato Nacional (CONAD), 50, Fortaleza/CE, 15-17 jul. 2005. Caderno de Textos. Fortaleza/CE: ANDES-SN, 2005, Texto n° 17.
ADUSP (Diretoria da). A Universidade Virtual segundo Vogt. Informativo Adusp n° 246, de 22 de outubro de 2007. São Paulo, SP, 2007.
BRASIL. Constituição (05 de outubro de 1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988.
______. Decreto n° 5.622, de 19 de dezembro de 2005. Regulamenta o art. 80, da Lei n° 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 20 dez. 2005.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanela. Direito Administrativo, 11ª ed., São Paulo, SP: Atlas, 1999. p. 288-290.
ESTADO DE SÃO PAULO. Constituição (05 de outubro de 1989). Constituição do Estado de São Paulo. São Paulo, SP: Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo, 1989.
ESTADO DE SÃO PAULO. Projeto de Lei n° 40, de 14 de fevereiro de 2008. Plano Plurianual para o período de 2008-2011 (Mensagem n° 8 do Senhor Governador do Estado). Diário Oficial do Estado, São Paulo, SP, 20 fev. 2008. Poder Legislativo, Suplemento.
FÉTIZON, Beatriz Alexandrina de Moura e MINTO, César Augusto. Ensino a distância: equívocos, legislação e defesa da formação presencial. Universidade e Sociedade, Brasília/DF, Ano XVI, n. 39, p.93-105, fev. 2007.
MINTO, César Augusto e SILVA, Maria Abádia da. Treinamento travestido de formação de nível superior. Universidade e Sociedade, Brasília/DF, Ano XI, n. 24, p.137-140, jun. 2001.
MINTO, César Augusto e MURANAKA, Maria Aparecida Segatto. Políticas públicas para a formação de profissionais em educação no Brasil. Universidade e Sociedade, Brasília/DF, Ano XI, n. 25, p. 134-143, dez. 2001.
VOGT, Carlos (Coord.); LOYOLLA, Waldomiro; DI GIOVANNI, Geraldo; ARCHANGELO, Jocimar. Detalhamento Operacional e Orçamentário Preliminar da Proposta de Implantação do Programa Universidade Virtual do Estado de São Paulo – UNIVESP, 18p. (folheto vazado em agosto, mas com data de 9/11/2007).
VOGT, Carlos (Coord.); LOYOLLA, Waldomiro; DI GIOVANNI, Geraldo; ARCHANGELO, Jocimar. Detalhamento Operacional e Orçamentário Preliminar da Proposta de Implantação do Programa Universidade Virtual do Estado de São Paulo – UNIVESP, Resumo Executivo, 8p. (folheto vazado em agosto, mas com data de 9/11/2007).
VOGT, Carlos (Coord.); LOYOLLA, Waldomiro; DI GIOVANNI, Geraldo; ARCHANGELO, Jocimar. Ante-Projeto de Proposta de Criação da Universidade Virtual do Estado de São Paulo – UNIVESP, 26p., sem data.

[i] Carlos Vogt é hoje (março de 2008) Secretário de Ensino Superior do Estado de São Paulo, os demais professores atuaram em universidades na cidade de Campinas (Unicamp ou PUC-Campinas), tendo alguns deles trabalhado na administração pública no governo de Fernando Henrique Cardoso.
[ii] É curioso o recurso ao “consórcio”, cuja compreensão trivial é: “Reunião ou associação de empresas, esp. para execução de um projeto de grande porte” (cf. AURÉLIO, 1999, p. 535), pois ele evoca a intenção de realizar um empreendimento empresarial mesmo, o que não se coadunaria com a concepção de política pública. Contudo, não desconhecemos que, do ponto de vista jurídico, “é o acordo de vontades entre duas ou mais pessoas jurídicas públicas de mesma natureza e mesmo nível de governo ou entre entidades da administração indireta para a consecução de objetivos comuns”. (cf. DI PIETRO, 1999. p. 288). O consórcio não adquire personalidade jurídica, sendo portanto apenas uma “articulação”.
[iii] Ambos formam implantados no estado de São Paulo a partir de 2001: o “PEC-Formação Universitária”, por meio de um convênio entre a Secretaria de Estado da Educação (SEE-SP), a USP, a Unesp e a PUC-SP; o “Pedagogia Cidadã” por convênio entre a SEE-SP e a Unesp.
[iv] A depender do governo do Estado essa situação não vai mudar, exemplo do que se afirma é a previsão de recursos para as três universidades estaduais paulistas no PPA 2008-2011: R$ 25 bilhões. Ao que tudo indica, tal previsão mantém a destinação atual de recursos (9,57% do ICMS) que, quando muito, apenas prevê cobrir os índices de inflação e de crescimento da economia previstos para o período, embora mencione a expansão do ensino superior público como meta.
[v] CF/1988: Nos dez primeiros anos da promulgação da Constituição, “as universidades públicas descentralizarão suas atividades, de modo a estender suas unidades de ensino superior às cidades de maior densidade populacional”. (Parágrafo único do Art. 60 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias – ADCT) e CESP/1989: “As universidades públicas estaduais deverão manter cursos noturnos que, no conjunto de suas unidades, correspondam a um terço pelo menos do total das vagas por elas oferecidas”. (Parágrafo único do Art. 253); e “[...] o Poder Público Estadual implantará ensino superior público e gratuito nas regiões de maior densidade populacional, no prazo de até três anos, estendendo as unidades das universidades públicas estaduais e diversificando os cursos de acordo com as necessidades sócio-econômicas dessas regiões. Parágrafo único – A expansão do ensino superior público a que se refere o caput poderá ser viabilizada na criação de universidades estaduais, garantindo o padrão de qualidade”. (Art. 52 do ADCT); e “O disposto no parágrafo único do art. 253 deverá ser implantado no prazo de dois anos”. (Art. 53 do ADCT).
[vi] “Detalhamento Operacional e Orçamentário Preliminar da Proposta de Implantação do Programa Universidade Virtual do Estado de São Paulo – UNIVESP”, 18p. ; e “Detalhamento Operacional e Orçamentário Preliminar da Proposta de Implantação do Programa Universidade Virtual do Estado de São Paulo – UNIVESP, Resumo Executivo”, 8p. (ambos vazados em agosto, mas com data de 9/11/2007).
[vii] Cabem aqui duas observações: 1) a preocupação não é descabida, pois a Sociedade Brasileira de Educação Matemática já denunciou em vários eventos (internos e na reunião anual da ANPEd de 2007) a perda de licenciandos em Matemática de cursos presenciais para cursos à distância e é muito provável que o mesmo esteja acontecendo em outras áreas; e 2) tapiá: madeira leve e de rápida decomposição, por este motivo muito utilizada para a confecção de caixões de defunto.

ensino à distância...Em favor da formação inicial presencial em todos os níveis


Todos nós sabemos que vivemos num mundo de múltiplas transformações e de recursos técnicos e tecnológicos crescentes. Acreditamos que há critérios para sua utilização, em especial quando se trata de atividades que podem afetar direta ou indiretamente a vida humana. Toda atividade humana vital – aquelas que se desenvolvem por meio da relação direta entre seres humanos e se baseiam no contato, na observação, no toque, no diálogo, no convívio, isto é, aquelas realizadas por enfermeiros, médicos, dentistas e, sobretudo, professores, entre tantas outras – exige determinada formação qualificada e deve ter como pressuposto formativo tanto as informações essenciais para o seu exercício profissional, como o desenvolvimento de capacidades relacionais que permitam aprimorar leituras de registros e expressões da linguagem corporal-afetiva. As informações, como expressões meramente comunicativas, podem ser armazenadas e disponibilizadas em livros, computadores, televisores, vídeos, CDs, DVDs; contudo, a dimensão formativa relacional só pode ser realizada de forma presencial.
Não há como tratar o dente cariado de uma pessoa sem tocá-la. Também, não há como perceber quando um estudante não está entendendo algum assunto em aula, sem que se note em seu rosto (ou corpo) expressão angustiada ou alheia. É fundamental perceber a expressão de alívio ou felicidade de um paciente quando constata que houve progresso e que um tratamento adequado sanou um problema; ou os olhos brilhantes de um estudante, quando entende e participa em uma aula, demonstração inequívoca de alegria e satisfação. Por tudo isso, não se trata de sermos contra as potencialidades e as facilidades que novos processos, equipamentos e ferramentas dos tempos modernos nos colocam a todo o momento, e sim de afirmarmos que a formação inicial deve ser presencial para todos aqueles que realizam atividade humana vital.
Pense bem...
l Você escolheria um médico ou dentista cujo diploma revelasse que sua formação inicial se deu à distância?
l E um(a) professor(a) que também ostentasse formação inicial à distância? Você teria – de fato – a confiança de entregar a esses(as) profissionais o controle sobre a ação escolar de seu filho?
l Você gostaria de ter feito um curso de formação inicial à distância?
Novas alegações, velhos interesses...
Nos dias atuais, alguns defensores do Ensino à Distância (EàD) têm agido de forma contundente, tanto em nível nacional (exemplo: criação da Universidade Aberta do Brasil – UAB), como no âmbito de diversos estados, em especial no de São Paulo (exemplo: criação do Programa Universidade Virtual do Estado de São Paulo – Univesp), apresentando novas alegações em seu favor, mas preservando velhos interesses, nem sempre claramente expressos.
Em favor do Ensino à Distância alega-se: que não há recursos para a educação superior presencial e, portanto, é preciso implantar o EàD; que as pessoas não têm acesso à educação presencial, por isso é necessário implantar o EàD; que não há limitações de cunho educacional do EàD (na forma de laboratórios e de bibliotecas); que outras limitações do EàD (como a convivência em ambiente universitário) são prescindíveis; que não há um único ambiente adequado aos estudos (desconsiderando que em casa é mais difícil, pois a moradia não é bom local de estudo, devido a múltiplas atividades e interações); que o EàD pode substituir o ensino presencial (desconhecendo que em outros países isso não ocorre e nem é recomendável); que recursos tecnológicos devem ser amplamente utilizados (desconsiderando que diferentes meios físicos – CDs, DVDs, vídeos, filmes, produções digitais, “slides” – hoje são/deveriam ser utilizados no ensino presencial como recursos pedagógicos auxiliares); que o Brasil não tem capacidade de expandir o ensino presencial (devido aos interesses corporativos) e que a “verdadeira” intenção é a de “incluir os excluídos”.
No entanto, é preciso ressaltar que essas alegações são parciais e questionáveis, pois não veiculam que setores de comércio (informática, desenvolvimento de softwares, produtos educacionais, editoras, empresas de comunicação etc.) têm muito a ganhar com a expansão de seus interesses nesse mercado. É de se lembrar que as primeiras propostas sobre o ensino à distância surgiram fundamentalmente como uma alternativa para contextos de difícil acesso (em nosso caso, região norte ou para localidades muito afastadas, no interior do país), o que não está ocorrendo, dado que a maioria das propostas está na região sudeste...
Além disso, como as primeiras iniciativas governamentais (UAB, Univesp) têm foco na formação docente é importante destacar que tal política implica a constituição de dois tipos de docentes, na medida em que as dimensões anteriormente citadas não se realizem: um formado à distância (criando um círculo vicioso) e outro presencial (cuja formação também deve ser constantemente questionada e reelaborada), ambos com títulos e direitos equivalentes, mas com posturas e concepções completamente diferentes...
Mas não é só na educação superior...
As ações governamentais e dos setores de mercado interessados no EàD não param no Ensino Superior, mas estão estendendo suas iniciativas à Educação Básica, onde podem ter consequências ainda mais graves. Recente norma do Conselho Estadual de Educação (CEE) de São Paulo dispôs ao Ensino Fundamental e ao Ensino Médio paulista a possibilidade de inserção do EàD (ou “educação semipresencial”, como é apresentado).
Estarrece-nos a recente Deliberação CEE Nº 77/2008, que estabeleceu orientações para organização e distribuição dos componentes dos ensinos fundamental e médio do sistema de ensino do Estado de São Paulo, em direção ao EàD. Assim, em seu Artigo 3º, prevê que, no ensino fundamental poderão ser utilizados mecanismos de Tecnologia da Informação e Comunicação (TIC) para atividades complementares de ensino, reforço e recuperação; em seu Artigo 4º, estabelece, por outro lado, que no ensino médio, quaisquer componentes curriculares poderão ser trabalhados na modalidade semipresencial. É preciso chamar atenção para o fato de que, em seu § 1º, o referido artigo considera como modalidade semipresencial quaisquer atividades didáticas, módulos ou unidades de ensino que estejam centrados na auto-aprendizagem, com a mediação de recursos didáticos organizados em diferentes suportes de informação que utilizem tecnologias de informação e comunicação remota e que, em seu § 2º, define o limite máximo para oferta de componentes curriculares nesta modalidade como sendo de 20% do total de horas destinadas ao curso.
O despropósito de pretender implantar o EàD no Ensino Médio nos parece ainda mais sério por atingir o jovem em um estágio anterior de uma formação mais ampla. Além disso, por serem mais “baratas” do que o pagamento de professores e professoras da Educação Básica contemplam interesses governamentais para a “diminuição de custos” e aguçam o interesse privado para a comercialização de seus “produtos tecnológicos” e de “sistemas de ensino” à distância. As Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC) deveriam ser simplesmente um recurso adicional nos processos de ensino e de aprendizagem e não deveria ser aberta a “oportunidade” de ensino “semipresencial” em um estado que não têm as dificuldades de acesso acima mencionadas. Contudo, por não sermos contra a possibilidade de nossos jovens tomarem contato com as TIC, seria mais adequado e louvável que o CEE-SP ampliasse o tempo de duração da jornada escolar, para a introdução de tais linguagens e técnicas, do que apontar para a possibilidade de redução dos componentes curriculares ou para o tratamento das disciplinas nos moldes do EàD, como ora proposto para os ensinos fundamental e médio. O acesso às TIC não pode significar precarização formativa!
Desta forma, o FEDEP-SP quer estabelecer diálogo com a sociedade e com os setores governamentais sobre essas propostas para que a voz dos educadores e da sociedade como um todo seja ouvida e considerada!

Fórum Estadual em Defesa da Escola Pública (FEDEP-SP), abril de 2009
(Ação Educativa, Adunesp, Adunicamp, Adusp, AGB-SP, Ande, Apampesp, Apase, Cedes, CPP, CRP-SP, DCE-Unicamp, Fórum de EJA-SP, Fórum Permanente de Educação Inclusiva, GT Educação do Movimento Nossa São Paulo, Sinteps, Sintunesp, Umes, Upes)

Ensino à Distância: equívocos, legislação e defesa da formação presencial

Beatriz Alexandrina de Moura Fétizon e César Augusto Minto [1]

As respostas à questão O que é? variam sempre segundo
a perspectiva a partir da qual a apreciamos. Assim, as respostas
às nossas perguntas podem sempre diferir umas das outras,
embora diversas delas (ou todas) possam ser, eventualmente, válidas.


RESUMO: Este artigo contém três seções. A primeira, Desfazendo equívocos, tenta problematizar a polarização entre visões antagônicas sobre o uso do Ensino à Distância (EaD) e as posturas ideológicas que têm permeado o debate deste tema no Brasil; questiona a indistinção entre educação e ensino, e busca desfazer as confusões entre o EaD e a mera utilização de técnicas de informação e comunicação e entre conhecimento e acúmulo de informações. A segunda, O que diz a legislação sobre EaD, analisa, de forma breve, o que emana sobre este tema da CF/1988, da LDB/1996, do Decreto Presidencial nº 5.622/2005, da Portaria Ministerial nº 4.321/2004 e da Resolução nº 1/2001 do CNE/CES, tecendo algumas críticas. E a terceira, Defesa da formação presencial, questiona a tentativa de adoção indiscriminada do EaD na educação sistemática, enquanto política pública, apresentando, em especial, argumentos de cunho sociológico, filosófico, psicopedagógico e metodológico para mostrar que tal adoção não é adequada, sobretudo para a formação de professores que, no limite, deve comportar uma espécie de “cláusula de barreira” para impedir que isto aconteça.

Palavras-chave: EDUCAÇÃO À DISTÂNCIA; ENSINO À DISTÂNCIA; LEGISLAÇÃO SOBRE EAD; POLÍTICA EDUCACIONAL; FORMAÇÃO DE PROFESSORES.

Desfazendo equívocos
A discussão sobre o tema “Educação à Distância” (Ed.aD)
[2] tem se constituído numa seara bastante confusa, sobretudo devido à polarização entre duas visões opostas e igualmente ideológicas e apaixonadas: uma, que defende a adoção da Ed.aD como forma democrática, moderna e oportuna de levar o conhecimento a todos, em todos os rincões deste país continental, induzindo à idéia de que, assim sendo, grande parte dos nossos problemas educacionais estariam resolvidos, como se fora uma panacéia educacional;[3] outra, que advoga a adoção da Ed.aD apenas e tão somente como forma alternativa, portanto complementar, de auxiliar no ensino presencial, enquanto parte dos requisitos para a consecução do objetivo maior de garantir a educação, direito de todos e dever do poder público. Por óbvio, não desconhecemos a existência de inúmeras possibilidades no interstício dessa polarização, aqui mencionada com o intuito de mostrar, de forma talvez mais didática, sua inadequação.
Tal polarização tem contribuído mais para obscurecer do que para clarear o debate, que deve ser travado de maneira adequada, sob pena de contemplar, de forma apressada e equivocada, qualquer uma das visões citadas, sem que a sociedade – a maior interessada – tenha condições de compreender e opinar se é ou não lícita a adoção indiscriminada da Ed.aD no país, pois, supostamente, é à sociedade que tal adoção beneficiaria.
Isso posto, logo de início,
duas questões precisam ser elucidadas: 1) desfazer a contumaz indistinção entre educação e ensino; e 2) desconstruir a confusão, também corriqueira, entre o ensino à distância e a mera utilização de técnicas de informação e comunicação nas atividades didáticas. Assim procedendo, esperamos contribuir para que as políticas públicas relativas a esse importante tema sejam adotadas somente com vistas a atender às reais necessidades da maioria da população brasileira.
É bom lembrar que, no dia-a-dia, tem sido comum as pessoas usarem as palavras
educação e ensino como sinônimas, sem que isto cause maiores problemas; e é até compreensível tal ocorrência, pois, intuitivamente, espera-se que ambas guardem relações estreitas e diretas de reciprocidade, tanto que é trivial as pessoas pensarem que “a todo ensino corresponde uma aprendizagem”, o que, em tese, contribuiria para a formação educacional, contudo isto nem sempre corresponde à realidade.[4] Mas o ponto crucial, aqui, é que, em se tratando de textos oficiais, de dispositivos legais e da adoção de políticas públicas, constitui-se numa impropriedade a confusão entre educação e ensino, devendo ser evitada a todo custo.
Há uma diferença clara entre educação e ensino. O conceito de educação é mais abrangente do que o de ensino: a educação é um processo social que, do ponto de vista mais amplo, representa o instrumental de que o grupo humano dispõe para promover a autoconstrução da humanidade de seus membros; e, do ponto de vista individual, a possibilidade de desenvolver atributos que permitam ao indivíduo construir-se humano (ou construir sua própria humanidade), a partir de seu equipamento pessoal e da ação do grupo. Ora, tais construções – individual e coletiva – exigem a adoção de políticas públicas adequadas, que, por sua vez, implicam a necessidade de articular as várias áreas que constituem os direitos sociais (Cf. Artigo 6º, da Constituição Federal de 1988), cujo atendimento cabe ao poder público e tem a ver com o grau de humanidade e de cidadania que se deseja garantir a toda a sociedade.
[5]
Igualmente importante, mas muito menos abrangente do que o conceito de educação, o conceito de ensino diz respeito à forma sistematizada – que se constitui num conjunto organizado, envolvendo a seleção de conteúdos e métodos – de trabalho pedagógico, que é adotada com o objetivo de disponibilizar, a todos os membros da sociedade, as informações, os conhecimentos e as teorias que já compõem um acervo de saberes que, por sua vez, é patrimônio da humanidade. Ou seja, quando se fala de ensino, trata-se do meio pelo qual se busca garantir às pessoas, via escolarização formal numa instituição específica – a escola, aquilo que lhes é essencial para construir suas próprias visões de mundo e poder agir de forma consciente, influindo na história e na cultura da sociedade em que vivem.
E nunca é demais lembrar que o ensino implica a necessidade de considerar duas de suas dimensões indissociáveis, ambas igualmente importantes, aqui só dissociadas para mostrar a inadequação de tratá-las separadamente: a transmissão e a construção de saberes. A transmissão diz respeito, em especial, ao fato de o objeto do ensino ser o conhecimento já consagrado, cuja vigência ainda cumpre um papel significativo, não prevalecendo dúvidas essenciais que justifiquem abandoná-lo; a construção, por sua vez, refere-se à possibilidade de elaboração de novos conhecimentos com base no questionamento daquilo que já se considera obsoleto ou inadequado, por alguma razão fundamentada, bem como numa série de outras circunstâncias ou ocorrências.
[6] A conjunção dessas duas dimensões do ensino amplia a chance de se obter a consecução de objetivos educacionais, mas, ainda assim, ensino não se confunde com educação, pois o primeiro é apenas um dos meios essenciais para se chegar à segunda.
Isso posto, cabe questionar, inclusive, a conveniência do uso da expressão Educação à Distância, dada a perspectiva conceitual abrangente que ela, eventualmente, pode evocar (e não corresponder à realidade), sendo lícito, até por prudência, adotar simplesmente a expressão Ensino à Distância (EaD).
A outra questão a ser elucidada, de antemão, refere-se à necessidade de desconstruir a imisção freqüente entre o ensino à distância (EaD) e a mera utilização de técnicas de informação e comunicação, nas atividades didáticas. Pouco se sabe sobre a autoria dessa confusão e sobre os motivos que levaram a propagar, dentre outras, a idéia limítrofe e reducionista de que existe uma relação intrínseca e biunívoca entre EaD e uso de técnicas de informação e comunicação, o que se constitui numa impropriedade, pelo simples fato de que tais técnicas, às quais não raro se busca agregar o adjetivo “modernas”, podem ser literalmente utilizadas em todas as situações de ensino, sejam estas presenciais ou à distância. Isto já é suficiente para mostrar o equívoco que pode decorrer dessa confusão conceitual.
Outras questões também precisam ser esclarecidas. A primeira delas refere-se ao fato de que, apesar de ser menos abrangente do que a educação, como dissemos anteriormente, o ensino é uma atividade muito mais complexa do que a mera difusão de informações, por qualquer meio, moderno ou não; além disso, “as informações não são, necessariamente, úteis por si, mas sim na medida em que as pessoas e a sociedade possam utilizá-las em benefício de si próprias e do coletivo.” E cabe lembrar que
Hoje, informações estão disponíveis em qualquer microcomputador ligado à rede mundial. O diferencial que caracteriza a apropriação efetiva do conhecimento é a capacidade de selecionar criteriosamente as informações que são relevantes para cada situação a enfrentar e, especialmente, a capacidade de correlacionar informações dispersas, tanto entre si, quanto com vivências pessoais e sociais anteriores, julgando sua validade para o enfrentamento de situações distintas. (ADUSP, 2005).
Relacionada com a anterior, a segunda questão diz respeito ao fato de que “o conhecimento não pode ser confundido com acúmulo de informações.” Um dos principais meios para a promoção de acesso ao conhecimento significativo, do ponto de vista social, é a educação escolar. Sistemática e formal, ela cumpre a função de ampliar as chances de o educando poder orientar-se, no meio natural e social em que vive, por meio do cotejo de conhecimentos já subsumidos, dos saberes acumulados por gerações anteriores “[...] e também da descoberta de potencialidades ainda não dadas, cuja consistência é julgada pelo educando, pelos seus parceiros de classe e pelo docente que os acompanha, que necessariamente precisa ser bem formado.” Assim, durante séculos, os avanços culturais e científicos foram favorecidos, em especial, pela interação dialógica dos estudantes com colegas e professores, num ambiente de efervescência cultural. (ADUSP, 2005, negritos no original).
Apresentamos, até aqui, alguns argumentos – que consideramos pertinentes – sobre a não conveniência dos rumos tomados pelo debate sobre o Ensino a Distância (EaD), no país, incluindo a polarização entre defensores incondicionais dessa alternativa “democratizante” e questionadores ferrenhos de sua utilização indiscriminada, o que, por si só, já cria um clima complexo, que tende a dificultar ou mesmo impedir uma discussão mais adequada; clima esse agravado por algumas questões que apimentam ainda mais o debate: a indistinção entre educação e ensino, a imisção entre o ensino à distância e a mera utilização de técnicas de informação e comunicação, e a confusão entre conhecimento e acúmulo de informações. Vejamos, a seguir, o que prevê a legislação sobre EaD, no Brasil.

O que diz a legislação sobre EaD
Verificamos, em especial, a parte relativa à educação, na Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988 (CF/1988); a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, de 1996 (LDB/1996); o Decreto nº 5.622, de 19 de dezembro de 2005, que regulamenta o artigo 80, da LDB; a Portaria Ministerial nº 4.361, de 29 de dezembro de 2004, que trata, dentre outras questões, dos procedimentos para credenciamento e recredenciamento de instituições de educação superior para oferta de cursos superiores a distância; e a Resolução CNE/CES nº 1, de 3 de abril de 2001, que estabelece normas para o funcionamento de cursos de pós-graduação, incluindo os por Ed.aD.
[7]
A CF/1988 não tratou dessa questão, dada a sua especificidade. Mas, registre-se que a Carta Magna induz confusão considerável no que diz respeito aos conceitos de educação e de ensino.[8]
A LDB/1996 deixa claro que disciplina apenas “a educação escolar, que se desenvolve, predominantemente, por meio do ensino, em instituições próprias.” (§1º, do artigo 1º, g. n.). Aqui, já pode-se antever uma brecha para a utilização do ensino, presencial ou à distância, para além de nas “instituições próprias” (as escolas), mas cabe lembrar que o §4º, do seu artigo 32 (Seção III – Do Ensino Fundamental), define que: “O ensino fundamental será presencial, sendo o ensino a distância utilizado como complementação da aprendizagem ou em situações emergenciais.” Mas é o artigo 80 (Título VIII – Das Disposições Gerais) que trata, em especial, do tema: “O Poder Público incentivará o desenvolvimento e a veiculação de programas de ensino a distância, em todos os níveis e modalidades de ensino, e de educação continuada.” (g. n.). Ora, como argumenta José Augusto Dias, programas “São atividades especiais, quer para oferecer oportunidade de complementação de estudos, quer para oferecer educação continuada [...]” e lembra que tal artigo apenas “[...] recomenda o oferecimento de programas, ou seja, não menciona e muito menos autoriza o oferecimento de cursos a distância.” (grifos no original). Ademais, o autor alerta para o fato de que,
[...] mesmo que a Lei permitisse o oferecimento de cursos a distância seria preciso ter presente que circunstância tornaria desejável esse procedimento. O ensino a distância somente seria justificável e deveria ser incentivado quando oferecesse oportunidade de estudo em regiões em que não há vagas, ou há grande deficiência de vagas, nos cursos presenciais. Fora destas hipóteses o curso a distância não tem justificativa.
[9] (DIAS, 2005).
Também sobre o artigo 80, da LDB/1996, de acordo com Erson de Oliveira (2005), a expressão “incentivará” revela que a oferta de EaD não seria de responsabilidade direta do Estado, mas que, na realidade, o poder público “ofereceria as condições para a sua expansão privatizante.” O autor argumenta, com razão, que os parágrafos desse mesmo artigo apenas detalham aspectos referentes a tal “oferta de condições”: 1) quem poderá oferecer tais programas? As “instituições especialmente credenciadas pela União” (§1º), que, por sua vez, também “regulamentará os requisitos para a realização de exames e registro de diploma relativos a cursos de educação a distância” (§2º, g. n.)
[10]; 2). “As normas para produção, controle e avaliação de programas de educação a distância e a autorização para sua implementação” nas diversas localidades são delegadas aos respectivos sistemas de ensino, que poderão realizá-las em “cooperação e integração” (§3º); e 3) “A educação a distância gozará de tratamento diferenciado”, o que significa: “custos de transmissão reduzidos em canais comerciais de radiodifusão sonora e de sons e imagens; concessão de canais com finalidades exclusivamente educativas; [e] reserva de tempo mínimo, sem ônus para o Poder Público, pelos concessionários de canais comerciais.” (§ 4º, incisos I a III, respectivamente). Como se pode ver, apesar de genérica, a LDB/1996 mostra preocupação significativa com o EaD.
Ainda sobre a LDB/1996, cabe mencionar que o §4º, do seu artigo 87 (Título IX – Das Disposições Transitórias), institui a “Década da Educação” (1997-2006) e estabelece que até o fim dela “[...] somente serão admitidos professores habilitados em nível superior ou formados por treinamento em serviço”. Esse trecho suscita, entre outras, duas questões cruciais. A primeira delas diz respeito a uma contradição com o artigo 62 (do corpo da lei) – para o exercício do magistério na educação infantil e nos quatro primeiros anos do ensino fundamental admite-se, como formação mínima, a de nível médio, na modalidade Normal; pois bem, leitura distorcida desses dois dispositivos permitiu que a Secretaria da Educação do Estado de São Paulo (SEE-SP) criasse um clima de terror entre docentes efetivos, na rede pública, sem formação de nível superior, por receio de perder seus empregos, fato este utilizado pela SEE-SP, em conjunto com a Universidade de São Paulo (USP), a Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp) e a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), para introduzir um “curso especial de formação de professores de 1ª a 4ª série do Ensino Fundamental” (“PEC/FOR PROF”, depois “PEC Formação Universitária”)
[11], com as seguintes características básicas: experimental, modular, aligeirado e com boa carga didática à distância. A segunda refere-se a um questionamento objetivo: treino forma? Por certo ele pode adestrar, mas formar é outra coisa, não é? Vale dizer, além de capciosa, tal iniciativa imiscuiu formação e treinamento, o que é assaz inadequado. (Cf. MINTO e SILVA, 2001; MINTO e MURANAKA, 2001).
O Decreto nº 5.622/2005, como já dissemos, regulamenta o artigo 80, da LDB, apresentando, em seu artigo 1º, uma definição bastante genérica do que se entende por Ed.aD:
Art.1º Para os fins deste Decreto, caracteriza-se a educação a distância como modalidade educacional na qual a mediação didático-pedagógica nos processos de ensino e aprendizagem ocorre com a utilização de meios e tecnologias de informação e comunicação, com estudantes e professores desenvolvendo atividades educativas em lugares e tempos diversos.
Além disso, estabelece que a tal modalidade
[...] organiza-se segundo metodologia, gestão e avaliação peculiares, para as quais deverá estar prevista a obrigatoriedade de momentos presenciais para: I – avaliação dos estudantes; II – estágios obrigatórios [...], III – defesa de trabalhos de conclusão de curso [...]; e IV – atividades relacionadas a laboratórios de ensino, quando for o caso.
Esta a síntese dos incisos I a IV, do § 1º, do artigo 1º, ficando os incisos II e III condicionados à sua previsão na legislação pertinente. Cabe aqui questionar, por um lado, a conveniência da definição adotada, que, por si só, não permite a diferenciação entre os ensinos presencial e à distância; por outro lado, os incisos citados não são plenamente esclarecedores, sobretudo no que diz respeito ao que deverá acontecer, caso os estágios e os trabalhos de conclusão de curso (incisos II e III) não estejam previstos na “legislação pertinente”, eles simplesmente deixariam de existir? Se positivo, cabe argüir se isso seria oportuno?
[12]
O Decreto nº 5.622/2005 abre a possibilidade de a Ed.aD ser utilizada – de forma indiscriminada – nos mais diversos níveis e modalidades educacionais existentes, no país: da Educação Básica (condicionada ao cumprimento do artigo 30, desse mesmo Decreto, a ser tratado adiante) até a pós-graduação (artigo 2º). Ao mesmo tempo, previne algumas situações indesejáveis, porque não resguardam o conceito de isonomia no tempo de duração, como por exemplo: “Os cursos e programas a distância deverão ser projetados com a mesma duração definida para os respectivos cursos na modalidade presencial.” (§ 1º, do artigo 3º, g. n.). Também chama a atenção o artigo 6º, sobretudo, mas não apenas, pela imprecisão de linguagem:
Art. 6º Os convênios e os acordos de cooperação celebrados para fins de oferta de cursos ou programas a distância entre instituições brasileiras, devidamente credenciadas, e suas similares estrangeiras, deverão ser previamente submetidos à análise e homologação pelo órgão normativo do respectivo sistema de ensino, para que os diplomas e certificados emitidos tenham validade nacional.
Isso posto, dentre outras, permanecem algumas questões: 1) o artigo 7º, do Decreto em análise, justamente aquele que deveria/deve embasar a decisão sobre: “I – credenciamento e renovação de credenciamento de instituições para oferta de educação a distância; e II – autorização, renovação de autorização, reconhecimento e renovação de reconhecimento dos cursos ou programas a distância.” (incisos do artigo 7º), peca por sua excessiva generalidade; 2) é lícito adotar o EaD – como política pública – de modo tão indiscriminado? Se a resposta for positiva, qual é a base de conhecimento acumulado sobre o tema, de que o país dispõe, para justificar adoção tão ampla?; 3) por que não se afirma, de forma categórica, que os cursos e programas à distância terão a mesma duração que os seus respectivos presenciais?; 4) a redação do artigo 6º é muito confusa, inclusive podendo evocar uma leitura de que cursos ou programas realizados por instituições estrangeiras não precisariam estar “devidamente credenciados”, o que, por certo, não se confirma; mas como entender, também, o açodamento para que diplomas e certificados referentes a tais cursos ou programas, sejam de instituições nacionais ou não, tenham validade nacional?; e, sobretudo, 5) como explicar tamanha imprecisão/confusão num só documento oficial?
Ainda acerca do Decreto nº 5.622/2005, uma primeira leitura de seu artigo 30 pode ensejar, simplesmente, a conclusão de que este lhe confere, digamos, credibilidade:
Art. 30 As instituições credenciadas para a oferta de educação a distância poderão solicitar autorização, junto aos órgãos normativos dos respectivos sistemas de ensino, para oferecer os ensinos fundamental e médio a distância, conforme § 4º do art. 32 da Lei nº 9.394, de 1996, exclusivamente para: I – a complementação de aprendizagem; ou II – em situações emergenciais. (grifo no original, indicando um link para a LDB).
Na verdade, o caput do artigo 30 apenas informa sobre procedimento para solicitar autorização para a oferta de tais cursos e repete parte da própria LDB. Mas seu parágrafo único define, de fato, as tais “situações emergenciais”
[13]:
Parágrafo único. A oferta de educação básica nos termos do caput contemplará a situação de cidadãos que: I – estejam impedidos, por algum motivo de saúde, de acompanhar ensino presencial; II – sejam portadores de necessidades especiais e requeiram serviços especializados de atendimento; III – se encontram no exterior, por qualquer motivo; IV – vivam em localidades que não contem com rede regular de atendimento escolar presencial; V – compulsoriamente sejam transferidos para regiões de difícil acesso, incluindo missões localizadas em regiões de fronteira; ou VI – estejam em situações de cárcere.
Assim, por certo, não se trata de conferir ou não credibilidade ao Decreto analisado, mas – sim – de o poder público considerar o conteúdo desse parágrafo único, do artigo 30, como base para a adoção do EaD – enquanto política pública – em qualquer dos níveis de ensino, no país. Ademais, uma questão ainda insiste em se fazer presente: por que será que isso só ocorre no “Capítulo VI – Das Disposições Finais”, do referido Decreto?
A Portaria Ministerial nº 4.361/2004, como já dissemos, diz respeito aos
[...] processos de credenciamento e recredenciamento de instituições de educação superior (IES), credenciamento para oferta de cursos de pós-graduação lato sensu, credenciamento e recredenciamento de instituições de educação superior para a oferta de cursos superiores a distância, de autorização, reconhecimento e renovação de reconhecimento de cursos superiores, bem como de transferência de mantença, aumento e remanejamento de vagas de cursos reconhecidos, desativação de cursos, descredenciamento de instituições, Plano de Desenvolvimento Institucional (PDI), aditamento de PDI, além de outros processos afins [...],
definindo que tais processos devem ser protocolizados por meio do Sistema de Acompanhamento de Processos das Instituições de Ensino Superior – SAPIEnS/MEC. Ou seja, tal Portaria estabelece os procedimentos burocráticos relativos aos processos mencionados, informa sobre o funcionamento e a responsabilidade de algumas instâncias dos órgãos da administração federal, na área da educação, inclusive define prazos e sanções nos casos de seu descumprimento. Grosso modo, essa Portaria, ao mesmo tempo em que causa a impressão de completude, evoca, também, a sensação de ser quase inacessível aos cidadãos “comuns”, o que dificulta, ou até inibe, qualquer iniciativa de acompanhamento e controle pelos setores sociais organizados, fato este indesejável.
A Portaria Ministerial nº 4.361/2004 parece exceder-se nos aspectos técnicos e descuidar-se dos pedagógicos (que podem fazer toda diferença), além de “pulverizar” informações e de forma confusa. Quanto a este último aspecto, por exemplo, de acordo com o seu artigo 5º, “Para a protocolização dos pedidos de credenciamento e recredenciamento de faculdades integradas, faculdades, faculdades de tecnologia, institutos superiores ou escolas superiores [...]” deixa-se de exigir a apresentação de “estatuto” e “descrição da infra-estrutura, corpo docente, tutoria, plataforma de educação a distância, metodologia, equipes multidisciplinares, parcerias e pólos, bem como outros elementos específicos para educação superior a distância” (incisos III e VII, do artigo 3º, dessa mesma Portaria); pouco mais adiante é que vai se completar a informação anterior: “No caso de processos de autorização de cursos superiores a distância, também deverão ser apresentados os documentos previstos no inciso VII do artigo 3º desta Portaria.” (§ 3º, do artigo 9º, g. n.) e “No caso de processos de reconhecimento de cursos superiores a distância, também, deverão ser apresentados os documentos previstos no inciso VII do artigo 3º desta Portaria.” (§ 3º, do artigo 10, g. n.). Ou seja, apesar de as informações serem completadas ao longo do texto, estas referem-se a fases distintas de um processo (credenciamento e recredenciamento, autorização e reconhecimento) que exige informações claras e objetivas.
Considerando o Decreto nº 5.622/2005 e a Portaria Ministerial nº 4.361/2004, sem ignorar a hierarquia da legislação educacional,
[14] cabe mencionar que a Portaria impõe maior rigor, por exemplo, nos casos de pedidos de credenciamento e recredenciamento de IES para oferta de cursos superiores a distância (artigo 8º), além de cercear a possibilidade de as IES solicitarem credenciamento “[...] quando titulares e dirigentes integrarem outras instituições ou mantenedoras que comprovadamente tenham cometido irregularidades ou tenham sofrido punições nos últimos 5 (cinco) anos.” (artigo 7º), o que é correto; enquanto, por sua vez, o Decreto arrefece o controle quando, também por exemplo,
Para oferta de cursos a distância dirigidos à educação fundamental [sic] de jovens e adultos, ensino médio e educação profissional de nível técnico, o Decreto nº 5.622/05 delegou competência às autoridades integrantes dos sistemas de ensino de que trata o artigo 8º da LDB, para promover os atos de credenciamento de instituições localizadas no âmbito de suas respectivas atribuições.
[15]
Ou seja, delegou a definição de aspecto importante do EaD para o “poder local”, o que é altamente questionável, num país ainda oligárquico, cuja tradição tem sido a do coronelismo, do clientelismo, do cartorialismo etc., exercendo forte influência junto às comunidades, às lideranças e às administrações.
A Resolução CNE/CES nº 1/2001, como já dissemos, estabelece normas para o funcionamento de cursos de pós-graduação. No que se refere a tais cursos à distância, há normas que são comuns tanto para os stricto sensu quanto para os latu sensu: ambos só poderão ser oferecidos por instituições credenciadas pela União, de acordo com o disposto no § 1º, do artigo 80, da LDB/1996 (Cf. artigos 3º e 11, respectivamente); deverão ter, necessariamente, provas e atividades presenciais (§ 1º, do artigo 3º, e parágrafo único, do artigo 11, respectivamente), devendo, no caso dos cursos de pós-graduação stricto sensu, os exames de qualificação e as defesas de dissertação ou tese, incluir, em suas bancas examinadoras, pelo menos um (1) membro não pertencente à instituição responsável pelo programa (§ 2º, do artigo 3º) e, no caso dos latu sensu, estes deverão ter defesa presencial de monografia ou trabalho de conclusão de curso (parágrafo único, do artigo 11). Ou seja, tais normas são bastante acanhadas e flexíveis, para dizer o mínimo. Mas registre-se que o artigo 2º, da Resolução CNE/CES nº 24/2002 (que alterou parte da Resolução em pauta), estabelece que:
Os cursos de pós-graduação de mestrado e ou doutorado [portanto, stricto sensu] oferecidos mediante formas de associação entre instituições brasileiras e instituições estrangeiras só poderão ser instalados após autorização do Ministério da Educação, conforme estabelecido no Artigo 1º desta Resolução [CNE/CES nº 1/2001] e seu parágrafo 1º.
[16]
Isso significa mostrar um certo “pulso”, sobretudo numa seara extremamente vulnerável ao apetite de instituições de cunho empresarial, nacionais ou estrangeiras, pelo lucro fácil, sem riscos. Mas, também, não é lícito ignorar que tal postura “mais enérgica”, digamos, só ocorreu como resultado da pressão dos setores sociais organizados.
Em síntese, a legislação sobre EaD é, no mínimo, genérica, ostentando características inaceitáveis em textos dessa natureza, sobretudo pela possibilidade, ainda que eventual, de evocar leituras diversas e contraditórias, o que deve ser evitado a todo custo. Por um lado, se tal legislação exacerba os aspectos técnicos e burocráticos, por outro lado, descuida-se das questões de cunho propriamente educacional – aliás, raramente mencionadas, a não ser enquanto dogmas assumidos. Mas, o que é ainda mais preocupante, como já dissemos, é a abertura indiscriminada para o EaD ser utilizado em todos os níveis da educação formal, sem que o país disponha de acúmulo consistente de conhecimentos sobre o tema. Tal legislação nem sequer explicita claramente se o EaD é concebido como “modalidade de ensino” (a não ser no Decreto citado, dentre os documentos aqui considerados), como “metodologia” ou apenas como “estratégia” para se chegar à consecução de algum objetivo – supostamente educacional, imaginamos.

Defesa da formação presencial
Vamos supor, então, que o projeto de sucessivos governos (referimo-nos aqui, sobretudo, aos dois governos de FHC e ao governo atual) para a Ed.aD, embora falem de educação, não se refiram à educação mesma, mas sim ao ensino. Ainda assim, uma boa apreciação do tal projeto nos levaria a contra-argumentar que se o seu objeto fosse exclusivamente o ensino, fora de qualquer perspectiva educativa, seria preciso acrescentar-lhe abrangência, de sorte a torná-lo instrumento de uma revolução total e radical em nosso sistema de ensino – começando, talvez, pela substituição do Ministério da Educação por um Ministério do Ensino. E, então, tal projeto teria que ser precedido de outro que tratasse realmente de educação e no qual se explicitassem os princípios e os pressupostos que ordenariam o sistema de ensino que dele derivasse – porque nenhum sistema de ensino pode prescindir da definição prévia do ideal a que ele deve servir e dos critérios, a começar pelos éticos, sobre os quais se assentará a tomada de decisão sobre as importantes questões: O quê? Para quê? e Como ensinar?
[17]
É claro que o EaD ensina e, se bem estruturado e conduzido, educa, como qualquer outra atividade na vida poderia fazê-lo. Aprendemos e nos educamos a vida toda à distância. Através dos nossos pais e por meio de uma série de circunstâncias, aprendemos com nossos antepassados, inclusive sem necessidade de os haver conhecido. Aprendemos e podemos educar-nos com autores que nunca vimos ou encontramos pessoalmente (alguns, de resto, jamais escreveram nada...) e, inclusive, com quem está há mais de 2000 anos de nós – assim, aprendemos e nos educamos com Sócrates, com Platão, com Aristóteles, com Tales, com Pitágoras, com Heráclito, com Anaxágoras, com Anaximandro e por aí afora. Aprendemos e nos educamos até com os animais, com as plantas, com os rios e os mares, com a paisagem, com as coisas. E a esmagadora maioria desses todos nem sequer poderiam “desconfiar” que nos ensinavam... (e, mais do que nos ensinar, podem educar-nos). Então, se é esse aprendizado e essa educação que o EaD pretende, toquemos em frente! Aliás, ele nem precisa ser proposto (e muito menos instituído...) ele existe e se impõe de todos os lados e por toda a vida – queiramos ou não!
Mas, há que se recusar o EaD, se o que com ele se pretende é a preparação sistemática para a vida pessoal, social e profissional que a cada um cabe viver e em que a cada um caberá desempenhar-se. E por que?
Em primeiro lugar, porque a vida humana e o ser humano são históricos. Assim, qualquer indivíduo que fosse obrigado a se autoconstruir abaixo da cultura de seu tempo construir-se-ia infra-histórico – irremediavelmente abaixo de sua condição de humanidade. O tempo humano não é simplesmente o tempo do relógio, nem é a mera e irremediável seqüência de milésimos de segundo que compõem o tempo físico e nem sequer é a sucessão fluida de presentes. O tempo humano é histórico. Quem estiver, pois, abaixo de seu tempo, estará aquém de sua condição histórica – autoconstruído e confinado numa infra-humanidade. Seria um infra-homem.
A educação sistemática (educação escolar, formal) não tem o direito de roubar à pessoa as condições do exercício de seu direito de construir-se humana e de humanamente desempenhar-se e viver (quanto a tal roubo, já estamos muito bem servidos de instituições públicas [e privadas] e sistemas sociais que o praticam...). Toda educação sistemática se faz num contínuo interagir da educação presencial com a à distância. À educação sistemática compete – precisamente porque sistemática – ser presencial: uma troca sistemática e organizada em situações de ensino e de aprendizagem assistidas na e pela convivência e no e pelo exercício da vivência humana que é, necessariamente, presencial, dado o seu caráter social.
O homem se exerce existencialmente na dupla dimensão em que se faz a construção e a autoconstrução de sua humanidade: as dimensões individual e social. Se tolhido em qualquer uma dessas dimensões essenciais, ou se privado de numa delas se exercer, terá sido amputado em uma das dimensões de sua humanidade; reduzido, pois, a uma infra-humanidade. E existirá como um infra-homem (é claro que poderá haver casos em que sozinhos os estudantes consigam superar os inconvenientes do EaD). Mas, a estrutura de um sistema de ensino – e, mais ainda, de um sistema educacional – tem que ser definida em vista da situação e da configuração correntes na realidade em que existe.
De um ponto de vista sociológico, hoje, o sistema escolar é um sistema especializado ao qual a sociedade tem que confiar a tarefa da educação sistemática das novas gerações. A escola e o processo de escolarização formal por ela desenvolvido têm como condição específica, sobretudo, a interação entre estudantes e professores. A eficiência e a eficácia das ações de fato educativas estão relacionadas com o grau de consciência e de racionalidade na condução do processo, donde decorre, para os professores, a necessidade de uma nítida compreensão de sua natureza como garantia do claro conhecimento de seus requisitos e exigências, de suas possibilidades e de suas limitações. Isto implica a necessidade de incluir, na formação do professor, a abordagem sociológica do processo educativo, da qual se espera contribuição essencial na abordagem propriamente pedagógica: discernimento na identificação das metas gerais a serem propostas ou daquelas que permanecem subjacentes à ação do grupo; viabilidade dos fins assumidos, por sua adequação à natureza do processo e aos recursos disponíveis; coerência e efetividade da ação pela compatibilidade com os fins que a desencadearam; e adequação dos efeitos da escolarização aos propósitos que a orientaram. (Cf. FÉTIZON, 1984).
De um ponto de vista filosófico, entendida a educação como veículo da assunção da humanidade pela conquista da autonomia pessoal e constatado o professor como agente externo específico do processo educativo, conclui-se pela importância prioritária de uma formação especializada para o professor, que se subentende atender as condições necessárias, embora não suficientes, aos bons desempenhos: 1) da tarefa que, no sistema, incumbe ao professor; e 2) do próprio sistema escolar face à sociedade que o mantém. Essas duas empreitadas são complexas; o ensino – papel primordial do professor – exige deste um desempenho que não se improvisa, na prática docente, e reclama formação séria e eficiente.
[18] Assim, a educação escolar não ocorre pelas simples circunstâncias sócio-culturais em ação na escola – logo, o desempenho do professor não pode ser aleatório, assim como seus resultados não podem ser fortuitos: ambos devem ser frutos de uma formação muito cuidadosa. E ensinar significa, em essência, potenciar a arte de pensar (inata, no ser humano e, portanto, no estudante), de construir concepções claras que se aplicam a experiências de primeira mão, selecionar informações relevantes, testar descobertas – logo, a formação do professor implica a posse do método científico e a capacidade de aumentar a chance de sua transferência para a experiência do educando. Ademais, nenhuma educação sistemática se sustenta sem uma antropovisão e uma cosmovisão consistentes; seu exame, sua crítica e sua constituição competem à formação do professor. (Cf. FÉTIZON, 1984).
De um ponto de vista psicopedagógico, considerando desde a psicologia da aprendizagem à do desenvolvimento e à da personalidade, constata-se que há um conjunto de conhecimentos necessários à orientação do procedimento do docente, face ao educando, e à garantia das condições mínimas daquele “conhecer” a quem se fala, necessário ao diálogo e à adequada condução do processo educativo. Tais conhecimentos devem ser contemplados na formação do professor, e a empreitada exige que tal formação seja presencial, pois trata-se de tarefas de extrema complexidade, envolvendo o desenvolvimento de um instrumental que inclui capacidades e habilidades de conhecimento, compreensão, análise, síntese, avaliação, dentre outras, cuja ausência tornaria lugar comum a persistência de professores – despreparados, desse ponto de vista – na manutenção de meios inadequados ao processo educativo, sem que estes sequer estejam aptos a detectar sua própria inadequação aos fins que eles mesmos selecionaram ou propuseram. (Cf. FÉTIZON, 1984).
De um ponto de vista metodológico, cabe lembrar que, na interação presencial entre professor(es), estudante(s) e objeto(s) de conhecimento, é comum ocorrer situações nas quais se pode constatar a inconveniência (fundamentada) da manutenção de determinados saberes e, muitas vezes, é preciso quase que alquebrar as convicções que os estudantes ainda consideram válidas, pois estes são fiéis escudeiros daquelas, enquanto elas ainda os satisfazem, ou seja, enquanto elas ainda lhes parecem fornecer respostas satisfatórias. Tais situações são muito importantes nos processos de ensino e de aprendizagem e ficam praticamente inviabilizadas em ambientes “virtuais”. Afora isso, o estímulo à observação, à formulação de hipóteses, à desestabilização, à equilibração, à reelaboração de conceitos – estímulo esse impregnado por aspectos afetivos e solidários – é um desafio constante no processo educacional. Processo este que é permeado pelo brilho-opacidade dos olhares, pela ginga dos que buscam, pelo sorriso maroto dos que encontram, pela fruição individual e coletiva do apreendido, resultando na aquisição, pelos estudantes, de autonomia para formular leituras de mundo e atuar como sujeitos históricos, e, pelos professores, de efetivação do seu compromisso profissional, mas também humano. Tal dimensão é intrínseca ao ensino presencial e estaria descartada no EaD, assim como, em tese, também estariam sendo descartados os próprios professores. (Cf. MINTO e SILVA, 2001).
Assim, pelos motivos já explicitados, a formação inicial tem que ser, necessariamente, presencial.
[19] E por formação inical entendemos aquela promovida pelo processo da
[...] educação como instrumento de formação ampla, permitindo a todos os seres humanos um desenvolvimento que respeite plenamente sua potencialidade, em especial no que se refere à capacidade de leitura crítica do meio natural e social em que vivem, assim como um real domínio do acervo de conhecimentos já produzidos pela sociedade (continuamente preservadas as especificidades e limitações inerentes às respectivas faixas etárias), permitindo a produção de novos saberes a partir da crítica daquilo que já se constatar incompleto ou ultrapassado. Em outras palavras, essa formação deve garantir todas as condições para que as pessoas possam atuar como seres críticos, construtores de sua própria cultura, de sua história e da sociedade em que vivem, pessoas que sejam progressivamente livres e solidárias, que desenvolvam valores e atributos inerentes à cidadania e que ajudem a construir uma sociedade cada vez mais livre, democrática, justa e igualitária. (ADUSP, 2005).
Dessa forma, insistimos, se pretendemos que as atividades didáticas sejam efetivamente formadoras, elas devem ser desenvolvidas na forma presencial: desde a educação infantil, o ensino fundamental, o ensino médio, o ensino de graduação (licenciatura e bacharelado), até o ensino de pós-graduação (mestrado e doutorado). Vale dizer, a qualquer tempo:
A formação do educando exige relações dialógicas presenciais, para que o professor estimule a reflexão, possibilitando o questionamento, a problematização, a constatação e a superação de contradições, a constante motivação e o crescimento progressivo do educando a partir da vivência de experiências efetivamente socializadoras. Todas essas dimensões ficam extremamente prejudicadas, se não impedidas, quando da adoção da [Ed.aD/do] EaD na formação. É dessa interação presencial que resultam os saberes socialmente referenciados, sendo essa vivência essencial, sobretudo na formação de docentes, mola-mestra para a continuidade deste ciclo virtuoso. (ADUSP, 2005).
À guisa de conclusão, recuperamos o mote colocado em epígrafe, para dizer que, no caso do tema em discussão, nossa resposta a “O que é?”, sem dúvida, trata-se do Ensino a Distância que, “segundo a perspectiva a partir da qual o apreciamos”, jamais pode ser confundido com Educação, assim como, também, não é oportuno confundi-lo com a mera utilização de técnicas/tecnologias – modernas ou não – de informação e comunicação, mas que deve ser usado, sim, como rica alternativa complementar nas situações de ensino presencial e como opção viável, se bem estruturado e conduzido, na “formação contínua ou continuada”. Quanto ao fato de que “as respostas às nossas perguntas podem sempre diferir umas das outras, embora diversas delas (ou todas) possam ser, eventualmente, válidas”, ponderamos ser necessário discernir a adoção do EaD, como política pública, pois, ao mesmo tempo em que tal adoção é uma “resposta válida”, nos casos de “complementação de aprendizagem; ou em situações emergenciais” (Cf. § 4º, do artigo 32, da LDB/1996), não é uma “resposta válida” para a formação – em especial e sobretudo – de professores. Daí, propormos que se adote uma espécie de “cláusula de barreira”, para impedir que governos incautos tentem adotar, como política pública, a educação sistemática a distância.

Referências
ADUSP (Diretoria da). Educação a Distância: a pá de cal na Formação? In: Conselho do ANDES-Sindicato Nacional (CONAD), 50, Fortaleza/CE, 15-17 jul. 2005. Caderno de Textos. Fortaleza/CE: ANDES-SN, 2005, Texto n° 17.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. (05 de outubro de 1988). Diário Oficial da União n° 191-A. Brasília/DF, 05 out. 1988.
______. Lei n° 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Diário Oficial da União. Brasília/DF: Gráfica do Senado, n° 248, p. 27833/41, 23 dez. 1996.
______. Decreto n° 5.622, de 19 de dezembro de 2005. Regulamenta o art. 80, da Lei n° 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Diário Oficial da União. Brasília/DF, 20 dez. 2005.
______. MEC. Portaria n° 4.361, de 29 de dezembro de 2004. Dispõe, dentre outras questões, sobre os procedimentos para credenciamento e recredenciamento de instituições de ensino superior para oferta de cursos superiores a distância. Diário Oficial da União. Brasília/DF, Seção I, p. 66-67, 30 dez. 2004.
______. MEC/CNE/CES. Resolução n° 1, de 03 de abril de 2001. Estabelece normas para o funcionamento de cursos de pós-graduação. Diário Oficial da União, Brasília/DF, Seção 1, p.12, 09 abr. 2001.
______. MEC/CNE/CES. Resolução n° 24, de 18 de dezembro de 2002Altera a redação do parágrafo 4°, do artigo 1°, e o artigo 2°, da Resolução CNE/CES n° 1/2001, que estabelece normas para o funcionamento de cursos de pós-graduação. Diário Oficial da União, Brasília/DF, Seção 1, p. 49, 20 dez. 2002.
______. MEC/SEED. Referenciais de Qualidade para Cursos a Distância. (junho de 2003). Apresentação de Carmen Moreira de Castro Neves, Diretora de Política de Educação a Distância. Brasília/DF: Ministério da Educação, Secretaria de Educação a Distância, 02 abr. 2003 (mimeo.).
CALLIGARIS, Contardo. Outdoors ou não. Folha de S. Paulo, São Paulo/SP,12 out. 2006. Cad. E, p.14.
DIAS, José Augusto. Ensino a distância para quê?. São Paulo/SP, maio de 2005 (mimeo.).
FÉTIZON, Beatriz Alexandrina de Moura. Educar Professores? (Um questionamento dos cursos de Licenciatura da Universidade de São Paulo). (Publicação de 1984). Dissertação de Mestrado. São Paulo/SP, FE-USP, 1978, 229 p. (Série: Estudos e Documentos, v. 24).
MINTO, César Augusto e SILVA, Maria Abádia da. Treinamento travestido de formação de nível superior. Universidade e Sociedade, Brasília/DF, Ano XI, n. 24, p.137-140, jun. 2001.
MINTO, César Augusto e MURANAKA, Maria Aparecida Segatto. Políticas públicas para a formação de profissionais em educação no Brasil. Universidade e Sociedade, Brasília/DF, Ano XI, n. 25, p. 134-143, dez. 2001.
OLIVEIRA, Erson Martins de. Educação a distância: a velha e a nova escola. Revista PUCviva, São Paulo/SP, Ano 6, n. 24, p. 92-113, jul./set. 2005.
[1] Docentes vinculados ao Departamento de Administração Escolar e Economia da Educação (EDA), da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FE-USP), estando Beatriz já aposentada. Agradecemos as contribuições de: Lalo Watanabe Minto, Marília Leite Washington, Nobuko Kawashita e Rubens Barbosa de Camargo.
[2] Usamos a sigla Ed.aD quando nos referimos à Educação à Distância e EaD quando nos referimos ao Ensino à Distância. Ao analisar os textos legais, mantivemos suas menções originais, mas consideramos imprópria, quase sempre que utilizada, a expressão “Educação a Distância”. Voltaremos a esse assunto mais adiante.
[3] Se prevalece tal idéia, por decorrência, ela pode induzir, por exemplo, uma outra: a de que o defendido por seus opositores é antidemocrático, anacrônico e inoportuno, o que seria muito nefasto, do ponto de vista social. Esse é um dos motivos pelos quais é preciso minimizar os efeitos das ideologias que permeiam tal discussão.
[4] Cabe aqui uma distinção: de atividades didáticas, pode decorrer, ou não, aprendizagem. Mas, se não houver aprendizagem, não terá havido ensino (embora possa ter havido, efetivamente, alguma atividade didática).
[5] Vale dizer: o que chamamos aqui de “ponto de vista mais amplo”e “ponto de vista individual” expressam dimensões de um mesmo processo, que é social. Dada a configuração da sociedade, hoje capitalista, entendemos que, pelo menos no curto prazo, a única educação que pode propiciar formação é a escolarização formal organizada e mantida pelo poder público.
[6] Ocorrências tais como: aparecimento de problemas e/ou questões que exigem esclarecimento e/ou intervenção; surgimento de hipóteses a partir de outras percepções advindas das correlações entre as diversas ordens de conhecimento; aperfeiçoamento de instrumentos e demais recursos de pesquisa, fruto do aperfeiçoamento de técnicas e invenções que respondem a novas demandas de: explicação e/ou solução de problemas de toda ordem, tais como os postos pelas novas formas de convivência social, dos meios de comunicação e pela abertura de fronteiras entre povos e nações, de novos estados e/ou nações; etc..
[7] Tais documentos constam do sítio eletrônico do Ministério da Educação (MEC), Secretaria de Educação a Distância (SEED), como sendo os que definem as bases legais para a “Regulamentação da EAD no Brasil”. É curioso que não se mencione a peça importante de planejamento que é o Plano Nacional de Educação (Lei n° 10.172/2001), cuja seção 6 trata de “Educação a Distância e Tecnologias Educacionais”, mas não desconhecemos que boa parte de seus dispositivos foram contemplados na legislação citada, que analisaremos em seguida. Talvez isto explique a omissão do referido PNE.
[8] A CF/1988 (Capítulo III – Da Educação, da Cultura e do Desporto; Seção I – Da Educação) dedica dez (10) artigos (205 a 214) à área, sendo a educação, para além das menções nos títulos citados, mencionada explicitamente apenas nos artigos 205, 208 e 214; nos demais, prevalece a referência ao ensino, por certo com o significado de “educação escolar”, conforme melhor especificado na LDB.
[9] Apesar de não discordarmos dos critérios admitidos pelo autor para a utilização do EaD (“em regiões onde não há vagas, ou há grande deficiência de vagas”), mesmo assim, cabe lembrar que qualquer eventual adoção do EaD deve estar acompanhada de um planejamento educacional efetivo, de forma a prevenir que a falta de vagas em cursos presenciais, ou sua insuficiência, continuem a acontecer.
[10] Repare-se que aqui já são mencionados cursos e não apenas programas.
[11] Cabe esclarecer os significados atribuídos pelos seus idealizadores a essas siglas: PEC – Projeto de Educação Continuada; FOR/PROF – Formação de Professores.
[12] Tais questionamentos levantam problemas, ou simplesmente omissões, que um texto oficial não deve suscitar. Tratando de assunto correlato, Contardo Calligaris adverte: “[...] a complexidade das regulamentações é, tradicionalmente, um convite à corrupção; quando ninguém sabe direito o que pode e o que não pode, alguém acaba pagando para que o deixem em paz.” (“Outdoors ou não”, Folha de S. Paulo, 12 out. 2006, Cad. E, p. 14).
[13] Embora tal artigo refira-se apenas e tão somente aos ensinos fundamental e médio a distância.
[14] Por certo, o Decreto (Presidencial) é superior à Portaria (Ministerial), mas não é lícito ignorar que ambos devem guardar coerência entre si e, ademais, que o “equilíbrio hierárquico” é delicado e complexo. No caso do ensino universitário, por exemplo, há necessidade, também, de regulamentação pela própria universidade que, sendo autônoma, mas não soberana, deve se coadunar, por conseguinte, com os Decretos e as Portarias sobre a matéria.
[15] Conforme citado na própria “página inicial” da Secretaria de Educação a Distância (SEED), no sítio do MEC: http://portal.mec.gov.br/seed/index.php?option=content&task=vie...
[16] Artigo 1º, §1º, da Resolução CNE/CES nº 1/2001: “A autorização, o reconhecimento e a renovação de reconhecimento de cursos de pós-graduação stricto sensu são concedidos por prazo determinado, dependendo de parecer favorável da Câmara de Educação Superior do Conselho Nacional de Educação, fundamentado nos resultados da avaliação realizada pela Fundação Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES e homologado pelo Ministro da Educação.”
[17] Pois tudo comporta ensino – inclusive atividades muito mais rendosas do que aquelas para as quais o nosso sistema de ensino – que é educacional – prepara. A título de exemplo: ensinar a desviar, com competência, recursos públicos ou privados, sem deixar traço que possibilite eventuais punições legais, preparará o estudante para profissão muito mais rendosa do que de dar aulas, atender a acidentados, construir casas etc.. O exemplo pode parecer extremado, mas revela, de forma contundente, a necessidade de critérios éticos nessas questões.
[18] Em outras palavras, a efetividade da ação educativa que a escola desenvolve depende da capacidade dos professores para: avaliar objetivamente a viabilidade dos fins e discernir o alcance e os limites dos recursos disponíveis; selecionar metodologias compatíveis com a natureza do processo e com os fins assumidos como viáveis; e para utilizar corretamente tais metodologias. (Cf. FÉTIZON, 1984, p. 85).
[19] A rigor, do ponto de vista conceitual, formação dispensa o acompanhamento de qualquer adjetivo que denote cronologia, pois trata-se de um processo ininterrupto; assim, mantivemos o inicial só para diferenciar formação daquilo que atualmente se denomina de “formação contínua ou continuada”. Ou seja, defendemos que só faz sentido falar em formação continuada ou contínua – que pode ser provida por EaD bem estruturado e conduzido – se, antes, tiver sido garantida a formação presencial, de boa qualidade, em todos os níveis da educação formal.