terça-feira, 26 de maio de 2009

Ensino à Distância: equívocos, legislação e defesa da formação presencial

Beatriz Alexandrina de Moura Fétizon e César Augusto Minto [1]

As respostas à questão O que é? variam sempre segundo
a perspectiva a partir da qual a apreciamos. Assim, as respostas
às nossas perguntas podem sempre diferir umas das outras,
embora diversas delas (ou todas) possam ser, eventualmente, válidas.


RESUMO: Este artigo contém três seções. A primeira, Desfazendo equívocos, tenta problematizar a polarização entre visões antagônicas sobre o uso do Ensino à Distância (EaD) e as posturas ideológicas que têm permeado o debate deste tema no Brasil; questiona a indistinção entre educação e ensino, e busca desfazer as confusões entre o EaD e a mera utilização de técnicas de informação e comunicação e entre conhecimento e acúmulo de informações. A segunda, O que diz a legislação sobre EaD, analisa, de forma breve, o que emana sobre este tema da CF/1988, da LDB/1996, do Decreto Presidencial nº 5.622/2005, da Portaria Ministerial nº 4.321/2004 e da Resolução nº 1/2001 do CNE/CES, tecendo algumas críticas. E a terceira, Defesa da formação presencial, questiona a tentativa de adoção indiscriminada do EaD na educação sistemática, enquanto política pública, apresentando, em especial, argumentos de cunho sociológico, filosófico, psicopedagógico e metodológico para mostrar que tal adoção não é adequada, sobretudo para a formação de professores que, no limite, deve comportar uma espécie de “cláusula de barreira” para impedir que isto aconteça.

Palavras-chave: EDUCAÇÃO À DISTÂNCIA; ENSINO À DISTÂNCIA; LEGISLAÇÃO SOBRE EAD; POLÍTICA EDUCACIONAL; FORMAÇÃO DE PROFESSORES.

Desfazendo equívocos
A discussão sobre o tema “Educação à Distância” (Ed.aD)
[2] tem se constituído numa seara bastante confusa, sobretudo devido à polarização entre duas visões opostas e igualmente ideológicas e apaixonadas: uma, que defende a adoção da Ed.aD como forma democrática, moderna e oportuna de levar o conhecimento a todos, em todos os rincões deste país continental, induzindo à idéia de que, assim sendo, grande parte dos nossos problemas educacionais estariam resolvidos, como se fora uma panacéia educacional;[3] outra, que advoga a adoção da Ed.aD apenas e tão somente como forma alternativa, portanto complementar, de auxiliar no ensino presencial, enquanto parte dos requisitos para a consecução do objetivo maior de garantir a educação, direito de todos e dever do poder público. Por óbvio, não desconhecemos a existência de inúmeras possibilidades no interstício dessa polarização, aqui mencionada com o intuito de mostrar, de forma talvez mais didática, sua inadequação.
Tal polarização tem contribuído mais para obscurecer do que para clarear o debate, que deve ser travado de maneira adequada, sob pena de contemplar, de forma apressada e equivocada, qualquer uma das visões citadas, sem que a sociedade – a maior interessada – tenha condições de compreender e opinar se é ou não lícita a adoção indiscriminada da Ed.aD no país, pois, supostamente, é à sociedade que tal adoção beneficiaria.
Isso posto, logo de início,
duas questões precisam ser elucidadas: 1) desfazer a contumaz indistinção entre educação e ensino; e 2) desconstruir a confusão, também corriqueira, entre o ensino à distância e a mera utilização de técnicas de informação e comunicação nas atividades didáticas. Assim procedendo, esperamos contribuir para que as políticas públicas relativas a esse importante tema sejam adotadas somente com vistas a atender às reais necessidades da maioria da população brasileira.
É bom lembrar que, no dia-a-dia, tem sido comum as pessoas usarem as palavras
educação e ensino como sinônimas, sem que isto cause maiores problemas; e é até compreensível tal ocorrência, pois, intuitivamente, espera-se que ambas guardem relações estreitas e diretas de reciprocidade, tanto que é trivial as pessoas pensarem que “a todo ensino corresponde uma aprendizagem”, o que, em tese, contribuiria para a formação educacional, contudo isto nem sempre corresponde à realidade.[4] Mas o ponto crucial, aqui, é que, em se tratando de textos oficiais, de dispositivos legais e da adoção de políticas públicas, constitui-se numa impropriedade a confusão entre educação e ensino, devendo ser evitada a todo custo.
Há uma diferença clara entre educação e ensino. O conceito de educação é mais abrangente do que o de ensino: a educação é um processo social que, do ponto de vista mais amplo, representa o instrumental de que o grupo humano dispõe para promover a autoconstrução da humanidade de seus membros; e, do ponto de vista individual, a possibilidade de desenvolver atributos que permitam ao indivíduo construir-se humano (ou construir sua própria humanidade), a partir de seu equipamento pessoal e da ação do grupo. Ora, tais construções – individual e coletiva – exigem a adoção de políticas públicas adequadas, que, por sua vez, implicam a necessidade de articular as várias áreas que constituem os direitos sociais (Cf. Artigo 6º, da Constituição Federal de 1988), cujo atendimento cabe ao poder público e tem a ver com o grau de humanidade e de cidadania que se deseja garantir a toda a sociedade.
[5]
Igualmente importante, mas muito menos abrangente do que o conceito de educação, o conceito de ensino diz respeito à forma sistematizada – que se constitui num conjunto organizado, envolvendo a seleção de conteúdos e métodos – de trabalho pedagógico, que é adotada com o objetivo de disponibilizar, a todos os membros da sociedade, as informações, os conhecimentos e as teorias que já compõem um acervo de saberes que, por sua vez, é patrimônio da humanidade. Ou seja, quando se fala de ensino, trata-se do meio pelo qual se busca garantir às pessoas, via escolarização formal numa instituição específica – a escola, aquilo que lhes é essencial para construir suas próprias visões de mundo e poder agir de forma consciente, influindo na história e na cultura da sociedade em que vivem.
E nunca é demais lembrar que o ensino implica a necessidade de considerar duas de suas dimensões indissociáveis, ambas igualmente importantes, aqui só dissociadas para mostrar a inadequação de tratá-las separadamente: a transmissão e a construção de saberes. A transmissão diz respeito, em especial, ao fato de o objeto do ensino ser o conhecimento já consagrado, cuja vigência ainda cumpre um papel significativo, não prevalecendo dúvidas essenciais que justifiquem abandoná-lo; a construção, por sua vez, refere-se à possibilidade de elaboração de novos conhecimentos com base no questionamento daquilo que já se considera obsoleto ou inadequado, por alguma razão fundamentada, bem como numa série de outras circunstâncias ou ocorrências.
[6] A conjunção dessas duas dimensões do ensino amplia a chance de se obter a consecução de objetivos educacionais, mas, ainda assim, ensino não se confunde com educação, pois o primeiro é apenas um dos meios essenciais para se chegar à segunda.
Isso posto, cabe questionar, inclusive, a conveniência do uso da expressão Educação à Distância, dada a perspectiva conceitual abrangente que ela, eventualmente, pode evocar (e não corresponder à realidade), sendo lícito, até por prudência, adotar simplesmente a expressão Ensino à Distância (EaD).
A outra questão a ser elucidada, de antemão, refere-se à necessidade de desconstruir a imisção freqüente entre o ensino à distância (EaD) e a mera utilização de técnicas de informação e comunicação, nas atividades didáticas. Pouco se sabe sobre a autoria dessa confusão e sobre os motivos que levaram a propagar, dentre outras, a idéia limítrofe e reducionista de que existe uma relação intrínseca e biunívoca entre EaD e uso de técnicas de informação e comunicação, o que se constitui numa impropriedade, pelo simples fato de que tais técnicas, às quais não raro se busca agregar o adjetivo “modernas”, podem ser literalmente utilizadas em todas as situações de ensino, sejam estas presenciais ou à distância. Isto já é suficiente para mostrar o equívoco que pode decorrer dessa confusão conceitual.
Outras questões também precisam ser esclarecidas. A primeira delas refere-se ao fato de que, apesar de ser menos abrangente do que a educação, como dissemos anteriormente, o ensino é uma atividade muito mais complexa do que a mera difusão de informações, por qualquer meio, moderno ou não; além disso, “as informações não são, necessariamente, úteis por si, mas sim na medida em que as pessoas e a sociedade possam utilizá-las em benefício de si próprias e do coletivo.” E cabe lembrar que
Hoje, informações estão disponíveis em qualquer microcomputador ligado à rede mundial. O diferencial que caracteriza a apropriação efetiva do conhecimento é a capacidade de selecionar criteriosamente as informações que são relevantes para cada situação a enfrentar e, especialmente, a capacidade de correlacionar informações dispersas, tanto entre si, quanto com vivências pessoais e sociais anteriores, julgando sua validade para o enfrentamento de situações distintas. (ADUSP, 2005).
Relacionada com a anterior, a segunda questão diz respeito ao fato de que “o conhecimento não pode ser confundido com acúmulo de informações.” Um dos principais meios para a promoção de acesso ao conhecimento significativo, do ponto de vista social, é a educação escolar. Sistemática e formal, ela cumpre a função de ampliar as chances de o educando poder orientar-se, no meio natural e social em que vive, por meio do cotejo de conhecimentos já subsumidos, dos saberes acumulados por gerações anteriores “[...] e também da descoberta de potencialidades ainda não dadas, cuja consistência é julgada pelo educando, pelos seus parceiros de classe e pelo docente que os acompanha, que necessariamente precisa ser bem formado.” Assim, durante séculos, os avanços culturais e científicos foram favorecidos, em especial, pela interação dialógica dos estudantes com colegas e professores, num ambiente de efervescência cultural. (ADUSP, 2005, negritos no original).
Apresentamos, até aqui, alguns argumentos – que consideramos pertinentes – sobre a não conveniência dos rumos tomados pelo debate sobre o Ensino a Distância (EaD), no país, incluindo a polarização entre defensores incondicionais dessa alternativa “democratizante” e questionadores ferrenhos de sua utilização indiscriminada, o que, por si só, já cria um clima complexo, que tende a dificultar ou mesmo impedir uma discussão mais adequada; clima esse agravado por algumas questões que apimentam ainda mais o debate: a indistinção entre educação e ensino, a imisção entre o ensino à distância e a mera utilização de técnicas de informação e comunicação, e a confusão entre conhecimento e acúmulo de informações. Vejamos, a seguir, o que prevê a legislação sobre EaD, no Brasil.

O que diz a legislação sobre EaD
Verificamos, em especial, a parte relativa à educação, na Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988 (CF/1988); a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, de 1996 (LDB/1996); o Decreto nº 5.622, de 19 de dezembro de 2005, que regulamenta o artigo 80, da LDB; a Portaria Ministerial nº 4.361, de 29 de dezembro de 2004, que trata, dentre outras questões, dos procedimentos para credenciamento e recredenciamento de instituições de educação superior para oferta de cursos superiores a distância; e a Resolução CNE/CES nº 1, de 3 de abril de 2001, que estabelece normas para o funcionamento de cursos de pós-graduação, incluindo os por Ed.aD.
[7]
A CF/1988 não tratou dessa questão, dada a sua especificidade. Mas, registre-se que a Carta Magna induz confusão considerável no que diz respeito aos conceitos de educação e de ensino.[8]
A LDB/1996 deixa claro que disciplina apenas “a educação escolar, que se desenvolve, predominantemente, por meio do ensino, em instituições próprias.” (§1º, do artigo 1º, g. n.). Aqui, já pode-se antever uma brecha para a utilização do ensino, presencial ou à distância, para além de nas “instituições próprias” (as escolas), mas cabe lembrar que o §4º, do seu artigo 32 (Seção III – Do Ensino Fundamental), define que: “O ensino fundamental será presencial, sendo o ensino a distância utilizado como complementação da aprendizagem ou em situações emergenciais.” Mas é o artigo 80 (Título VIII – Das Disposições Gerais) que trata, em especial, do tema: “O Poder Público incentivará o desenvolvimento e a veiculação de programas de ensino a distância, em todos os níveis e modalidades de ensino, e de educação continuada.” (g. n.). Ora, como argumenta José Augusto Dias, programas “São atividades especiais, quer para oferecer oportunidade de complementação de estudos, quer para oferecer educação continuada [...]” e lembra que tal artigo apenas “[...] recomenda o oferecimento de programas, ou seja, não menciona e muito menos autoriza o oferecimento de cursos a distância.” (grifos no original). Ademais, o autor alerta para o fato de que,
[...] mesmo que a Lei permitisse o oferecimento de cursos a distância seria preciso ter presente que circunstância tornaria desejável esse procedimento. O ensino a distância somente seria justificável e deveria ser incentivado quando oferecesse oportunidade de estudo em regiões em que não há vagas, ou há grande deficiência de vagas, nos cursos presenciais. Fora destas hipóteses o curso a distância não tem justificativa.
[9] (DIAS, 2005).
Também sobre o artigo 80, da LDB/1996, de acordo com Erson de Oliveira (2005), a expressão “incentivará” revela que a oferta de EaD não seria de responsabilidade direta do Estado, mas que, na realidade, o poder público “ofereceria as condições para a sua expansão privatizante.” O autor argumenta, com razão, que os parágrafos desse mesmo artigo apenas detalham aspectos referentes a tal “oferta de condições”: 1) quem poderá oferecer tais programas? As “instituições especialmente credenciadas pela União” (§1º), que, por sua vez, também “regulamentará os requisitos para a realização de exames e registro de diploma relativos a cursos de educação a distância” (§2º, g. n.)
[10]; 2). “As normas para produção, controle e avaliação de programas de educação a distância e a autorização para sua implementação” nas diversas localidades são delegadas aos respectivos sistemas de ensino, que poderão realizá-las em “cooperação e integração” (§3º); e 3) “A educação a distância gozará de tratamento diferenciado”, o que significa: “custos de transmissão reduzidos em canais comerciais de radiodifusão sonora e de sons e imagens; concessão de canais com finalidades exclusivamente educativas; [e] reserva de tempo mínimo, sem ônus para o Poder Público, pelos concessionários de canais comerciais.” (§ 4º, incisos I a III, respectivamente). Como se pode ver, apesar de genérica, a LDB/1996 mostra preocupação significativa com o EaD.
Ainda sobre a LDB/1996, cabe mencionar que o §4º, do seu artigo 87 (Título IX – Das Disposições Transitórias), institui a “Década da Educação” (1997-2006) e estabelece que até o fim dela “[...] somente serão admitidos professores habilitados em nível superior ou formados por treinamento em serviço”. Esse trecho suscita, entre outras, duas questões cruciais. A primeira delas diz respeito a uma contradição com o artigo 62 (do corpo da lei) – para o exercício do magistério na educação infantil e nos quatro primeiros anos do ensino fundamental admite-se, como formação mínima, a de nível médio, na modalidade Normal; pois bem, leitura distorcida desses dois dispositivos permitiu que a Secretaria da Educação do Estado de São Paulo (SEE-SP) criasse um clima de terror entre docentes efetivos, na rede pública, sem formação de nível superior, por receio de perder seus empregos, fato este utilizado pela SEE-SP, em conjunto com a Universidade de São Paulo (USP), a Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp) e a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), para introduzir um “curso especial de formação de professores de 1ª a 4ª série do Ensino Fundamental” (“PEC/FOR PROF”, depois “PEC Formação Universitária”)
[11], com as seguintes características básicas: experimental, modular, aligeirado e com boa carga didática à distância. A segunda refere-se a um questionamento objetivo: treino forma? Por certo ele pode adestrar, mas formar é outra coisa, não é? Vale dizer, além de capciosa, tal iniciativa imiscuiu formação e treinamento, o que é assaz inadequado. (Cf. MINTO e SILVA, 2001; MINTO e MURANAKA, 2001).
O Decreto nº 5.622/2005, como já dissemos, regulamenta o artigo 80, da LDB, apresentando, em seu artigo 1º, uma definição bastante genérica do que se entende por Ed.aD:
Art.1º Para os fins deste Decreto, caracteriza-se a educação a distância como modalidade educacional na qual a mediação didático-pedagógica nos processos de ensino e aprendizagem ocorre com a utilização de meios e tecnologias de informação e comunicação, com estudantes e professores desenvolvendo atividades educativas em lugares e tempos diversos.
Além disso, estabelece que a tal modalidade
[...] organiza-se segundo metodologia, gestão e avaliação peculiares, para as quais deverá estar prevista a obrigatoriedade de momentos presenciais para: I – avaliação dos estudantes; II – estágios obrigatórios [...], III – defesa de trabalhos de conclusão de curso [...]; e IV – atividades relacionadas a laboratórios de ensino, quando for o caso.
Esta a síntese dos incisos I a IV, do § 1º, do artigo 1º, ficando os incisos II e III condicionados à sua previsão na legislação pertinente. Cabe aqui questionar, por um lado, a conveniência da definição adotada, que, por si só, não permite a diferenciação entre os ensinos presencial e à distância; por outro lado, os incisos citados não são plenamente esclarecedores, sobretudo no que diz respeito ao que deverá acontecer, caso os estágios e os trabalhos de conclusão de curso (incisos II e III) não estejam previstos na “legislação pertinente”, eles simplesmente deixariam de existir? Se positivo, cabe argüir se isso seria oportuno?
[12]
O Decreto nº 5.622/2005 abre a possibilidade de a Ed.aD ser utilizada – de forma indiscriminada – nos mais diversos níveis e modalidades educacionais existentes, no país: da Educação Básica (condicionada ao cumprimento do artigo 30, desse mesmo Decreto, a ser tratado adiante) até a pós-graduação (artigo 2º). Ao mesmo tempo, previne algumas situações indesejáveis, porque não resguardam o conceito de isonomia no tempo de duração, como por exemplo: “Os cursos e programas a distância deverão ser projetados com a mesma duração definida para os respectivos cursos na modalidade presencial.” (§ 1º, do artigo 3º, g. n.). Também chama a atenção o artigo 6º, sobretudo, mas não apenas, pela imprecisão de linguagem:
Art. 6º Os convênios e os acordos de cooperação celebrados para fins de oferta de cursos ou programas a distância entre instituições brasileiras, devidamente credenciadas, e suas similares estrangeiras, deverão ser previamente submetidos à análise e homologação pelo órgão normativo do respectivo sistema de ensino, para que os diplomas e certificados emitidos tenham validade nacional.
Isso posto, dentre outras, permanecem algumas questões: 1) o artigo 7º, do Decreto em análise, justamente aquele que deveria/deve embasar a decisão sobre: “I – credenciamento e renovação de credenciamento de instituições para oferta de educação a distância; e II – autorização, renovação de autorização, reconhecimento e renovação de reconhecimento dos cursos ou programas a distância.” (incisos do artigo 7º), peca por sua excessiva generalidade; 2) é lícito adotar o EaD – como política pública – de modo tão indiscriminado? Se a resposta for positiva, qual é a base de conhecimento acumulado sobre o tema, de que o país dispõe, para justificar adoção tão ampla?; 3) por que não se afirma, de forma categórica, que os cursos e programas à distância terão a mesma duração que os seus respectivos presenciais?; 4) a redação do artigo 6º é muito confusa, inclusive podendo evocar uma leitura de que cursos ou programas realizados por instituições estrangeiras não precisariam estar “devidamente credenciados”, o que, por certo, não se confirma; mas como entender, também, o açodamento para que diplomas e certificados referentes a tais cursos ou programas, sejam de instituições nacionais ou não, tenham validade nacional?; e, sobretudo, 5) como explicar tamanha imprecisão/confusão num só documento oficial?
Ainda acerca do Decreto nº 5.622/2005, uma primeira leitura de seu artigo 30 pode ensejar, simplesmente, a conclusão de que este lhe confere, digamos, credibilidade:
Art. 30 As instituições credenciadas para a oferta de educação a distância poderão solicitar autorização, junto aos órgãos normativos dos respectivos sistemas de ensino, para oferecer os ensinos fundamental e médio a distância, conforme § 4º do art. 32 da Lei nº 9.394, de 1996, exclusivamente para: I – a complementação de aprendizagem; ou II – em situações emergenciais. (grifo no original, indicando um link para a LDB).
Na verdade, o caput do artigo 30 apenas informa sobre procedimento para solicitar autorização para a oferta de tais cursos e repete parte da própria LDB. Mas seu parágrafo único define, de fato, as tais “situações emergenciais”
[13]:
Parágrafo único. A oferta de educação básica nos termos do caput contemplará a situação de cidadãos que: I – estejam impedidos, por algum motivo de saúde, de acompanhar ensino presencial; II – sejam portadores de necessidades especiais e requeiram serviços especializados de atendimento; III – se encontram no exterior, por qualquer motivo; IV – vivam em localidades que não contem com rede regular de atendimento escolar presencial; V – compulsoriamente sejam transferidos para regiões de difícil acesso, incluindo missões localizadas em regiões de fronteira; ou VI – estejam em situações de cárcere.
Assim, por certo, não se trata de conferir ou não credibilidade ao Decreto analisado, mas – sim – de o poder público considerar o conteúdo desse parágrafo único, do artigo 30, como base para a adoção do EaD – enquanto política pública – em qualquer dos níveis de ensino, no país. Ademais, uma questão ainda insiste em se fazer presente: por que será que isso só ocorre no “Capítulo VI – Das Disposições Finais”, do referido Decreto?
A Portaria Ministerial nº 4.361/2004, como já dissemos, diz respeito aos
[...] processos de credenciamento e recredenciamento de instituições de educação superior (IES), credenciamento para oferta de cursos de pós-graduação lato sensu, credenciamento e recredenciamento de instituições de educação superior para a oferta de cursos superiores a distância, de autorização, reconhecimento e renovação de reconhecimento de cursos superiores, bem como de transferência de mantença, aumento e remanejamento de vagas de cursos reconhecidos, desativação de cursos, descredenciamento de instituições, Plano de Desenvolvimento Institucional (PDI), aditamento de PDI, além de outros processos afins [...],
definindo que tais processos devem ser protocolizados por meio do Sistema de Acompanhamento de Processos das Instituições de Ensino Superior – SAPIEnS/MEC. Ou seja, tal Portaria estabelece os procedimentos burocráticos relativos aos processos mencionados, informa sobre o funcionamento e a responsabilidade de algumas instâncias dos órgãos da administração federal, na área da educação, inclusive define prazos e sanções nos casos de seu descumprimento. Grosso modo, essa Portaria, ao mesmo tempo em que causa a impressão de completude, evoca, também, a sensação de ser quase inacessível aos cidadãos “comuns”, o que dificulta, ou até inibe, qualquer iniciativa de acompanhamento e controle pelos setores sociais organizados, fato este indesejável.
A Portaria Ministerial nº 4.361/2004 parece exceder-se nos aspectos técnicos e descuidar-se dos pedagógicos (que podem fazer toda diferença), além de “pulverizar” informações e de forma confusa. Quanto a este último aspecto, por exemplo, de acordo com o seu artigo 5º, “Para a protocolização dos pedidos de credenciamento e recredenciamento de faculdades integradas, faculdades, faculdades de tecnologia, institutos superiores ou escolas superiores [...]” deixa-se de exigir a apresentação de “estatuto” e “descrição da infra-estrutura, corpo docente, tutoria, plataforma de educação a distância, metodologia, equipes multidisciplinares, parcerias e pólos, bem como outros elementos específicos para educação superior a distância” (incisos III e VII, do artigo 3º, dessa mesma Portaria); pouco mais adiante é que vai se completar a informação anterior: “No caso de processos de autorização de cursos superiores a distância, também deverão ser apresentados os documentos previstos no inciso VII do artigo 3º desta Portaria.” (§ 3º, do artigo 9º, g. n.) e “No caso de processos de reconhecimento de cursos superiores a distância, também, deverão ser apresentados os documentos previstos no inciso VII do artigo 3º desta Portaria.” (§ 3º, do artigo 10, g. n.). Ou seja, apesar de as informações serem completadas ao longo do texto, estas referem-se a fases distintas de um processo (credenciamento e recredenciamento, autorização e reconhecimento) que exige informações claras e objetivas.
Considerando o Decreto nº 5.622/2005 e a Portaria Ministerial nº 4.361/2004, sem ignorar a hierarquia da legislação educacional,
[14] cabe mencionar que a Portaria impõe maior rigor, por exemplo, nos casos de pedidos de credenciamento e recredenciamento de IES para oferta de cursos superiores a distância (artigo 8º), além de cercear a possibilidade de as IES solicitarem credenciamento “[...] quando titulares e dirigentes integrarem outras instituições ou mantenedoras que comprovadamente tenham cometido irregularidades ou tenham sofrido punições nos últimos 5 (cinco) anos.” (artigo 7º), o que é correto; enquanto, por sua vez, o Decreto arrefece o controle quando, também por exemplo,
Para oferta de cursos a distância dirigidos à educação fundamental [sic] de jovens e adultos, ensino médio e educação profissional de nível técnico, o Decreto nº 5.622/05 delegou competência às autoridades integrantes dos sistemas de ensino de que trata o artigo 8º da LDB, para promover os atos de credenciamento de instituições localizadas no âmbito de suas respectivas atribuições.
[15]
Ou seja, delegou a definição de aspecto importante do EaD para o “poder local”, o que é altamente questionável, num país ainda oligárquico, cuja tradição tem sido a do coronelismo, do clientelismo, do cartorialismo etc., exercendo forte influência junto às comunidades, às lideranças e às administrações.
A Resolução CNE/CES nº 1/2001, como já dissemos, estabelece normas para o funcionamento de cursos de pós-graduação. No que se refere a tais cursos à distância, há normas que são comuns tanto para os stricto sensu quanto para os latu sensu: ambos só poderão ser oferecidos por instituições credenciadas pela União, de acordo com o disposto no § 1º, do artigo 80, da LDB/1996 (Cf. artigos 3º e 11, respectivamente); deverão ter, necessariamente, provas e atividades presenciais (§ 1º, do artigo 3º, e parágrafo único, do artigo 11, respectivamente), devendo, no caso dos cursos de pós-graduação stricto sensu, os exames de qualificação e as defesas de dissertação ou tese, incluir, em suas bancas examinadoras, pelo menos um (1) membro não pertencente à instituição responsável pelo programa (§ 2º, do artigo 3º) e, no caso dos latu sensu, estes deverão ter defesa presencial de monografia ou trabalho de conclusão de curso (parágrafo único, do artigo 11). Ou seja, tais normas são bastante acanhadas e flexíveis, para dizer o mínimo. Mas registre-se que o artigo 2º, da Resolução CNE/CES nº 24/2002 (que alterou parte da Resolução em pauta), estabelece que:
Os cursos de pós-graduação de mestrado e ou doutorado [portanto, stricto sensu] oferecidos mediante formas de associação entre instituições brasileiras e instituições estrangeiras só poderão ser instalados após autorização do Ministério da Educação, conforme estabelecido no Artigo 1º desta Resolução [CNE/CES nº 1/2001] e seu parágrafo 1º.
[16]
Isso significa mostrar um certo “pulso”, sobretudo numa seara extremamente vulnerável ao apetite de instituições de cunho empresarial, nacionais ou estrangeiras, pelo lucro fácil, sem riscos. Mas, também, não é lícito ignorar que tal postura “mais enérgica”, digamos, só ocorreu como resultado da pressão dos setores sociais organizados.
Em síntese, a legislação sobre EaD é, no mínimo, genérica, ostentando características inaceitáveis em textos dessa natureza, sobretudo pela possibilidade, ainda que eventual, de evocar leituras diversas e contraditórias, o que deve ser evitado a todo custo. Por um lado, se tal legislação exacerba os aspectos técnicos e burocráticos, por outro lado, descuida-se das questões de cunho propriamente educacional – aliás, raramente mencionadas, a não ser enquanto dogmas assumidos. Mas, o que é ainda mais preocupante, como já dissemos, é a abertura indiscriminada para o EaD ser utilizado em todos os níveis da educação formal, sem que o país disponha de acúmulo consistente de conhecimentos sobre o tema. Tal legislação nem sequer explicita claramente se o EaD é concebido como “modalidade de ensino” (a não ser no Decreto citado, dentre os documentos aqui considerados), como “metodologia” ou apenas como “estratégia” para se chegar à consecução de algum objetivo – supostamente educacional, imaginamos.

Defesa da formação presencial
Vamos supor, então, que o projeto de sucessivos governos (referimo-nos aqui, sobretudo, aos dois governos de FHC e ao governo atual) para a Ed.aD, embora falem de educação, não se refiram à educação mesma, mas sim ao ensino. Ainda assim, uma boa apreciação do tal projeto nos levaria a contra-argumentar que se o seu objeto fosse exclusivamente o ensino, fora de qualquer perspectiva educativa, seria preciso acrescentar-lhe abrangência, de sorte a torná-lo instrumento de uma revolução total e radical em nosso sistema de ensino – começando, talvez, pela substituição do Ministério da Educação por um Ministério do Ensino. E, então, tal projeto teria que ser precedido de outro que tratasse realmente de educação e no qual se explicitassem os princípios e os pressupostos que ordenariam o sistema de ensino que dele derivasse – porque nenhum sistema de ensino pode prescindir da definição prévia do ideal a que ele deve servir e dos critérios, a começar pelos éticos, sobre os quais se assentará a tomada de decisão sobre as importantes questões: O quê? Para quê? e Como ensinar?
[17]
É claro que o EaD ensina e, se bem estruturado e conduzido, educa, como qualquer outra atividade na vida poderia fazê-lo. Aprendemos e nos educamos a vida toda à distância. Através dos nossos pais e por meio de uma série de circunstâncias, aprendemos com nossos antepassados, inclusive sem necessidade de os haver conhecido. Aprendemos e podemos educar-nos com autores que nunca vimos ou encontramos pessoalmente (alguns, de resto, jamais escreveram nada...) e, inclusive, com quem está há mais de 2000 anos de nós – assim, aprendemos e nos educamos com Sócrates, com Platão, com Aristóteles, com Tales, com Pitágoras, com Heráclito, com Anaxágoras, com Anaximandro e por aí afora. Aprendemos e nos educamos até com os animais, com as plantas, com os rios e os mares, com a paisagem, com as coisas. E a esmagadora maioria desses todos nem sequer poderiam “desconfiar” que nos ensinavam... (e, mais do que nos ensinar, podem educar-nos). Então, se é esse aprendizado e essa educação que o EaD pretende, toquemos em frente! Aliás, ele nem precisa ser proposto (e muito menos instituído...) ele existe e se impõe de todos os lados e por toda a vida – queiramos ou não!
Mas, há que se recusar o EaD, se o que com ele se pretende é a preparação sistemática para a vida pessoal, social e profissional que a cada um cabe viver e em que a cada um caberá desempenhar-se. E por que?
Em primeiro lugar, porque a vida humana e o ser humano são históricos. Assim, qualquer indivíduo que fosse obrigado a se autoconstruir abaixo da cultura de seu tempo construir-se-ia infra-histórico – irremediavelmente abaixo de sua condição de humanidade. O tempo humano não é simplesmente o tempo do relógio, nem é a mera e irremediável seqüência de milésimos de segundo que compõem o tempo físico e nem sequer é a sucessão fluida de presentes. O tempo humano é histórico. Quem estiver, pois, abaixo de seu tempo, estará aquém de sua condição histórica – autoconstruído e confinado numa infra-humanidade. Seria um infra-homem.
A educação sistemática (educação escolar, formal) não tem o direito de roubar à pessoa as condições do exercício de seu direito de construir-se humana e de humanamente desempenhar-se e viver (quanto a tal roubo, já estamos muito bem servidos de instituições públicas [e privadas] e sistemas sociais que o praticam...). Toda educação sistemática se faz num contínuo interagir da educação presencial com a à distância. À educação sistemática compete – precisamente porque sistemática – ser presencial: uma troca sistemática e organizada em situações de ensino e de aprendizagem assistidas na e pela convivência e no e pelo exercício da vivência humana que é, necessariamente, presencial, dado o seu caráter social.
O homem se exerce existencialmente na dupla dimensão em que se faz a construção e a autoconstrução de sua humanidade: as dimensões individual e social. Se tolhido em qualquer uma dessas dimensões essenciais, ou se privado de numa delas se exercer, terá sido amputado em uma das dimensões de sua humanidade; reduzido, pois, a uma infra-humanidade. E existirá como um infra-homem (é claro que poderá haver casos em que sozinhos os estudantes consigam superar os inconvenientes do EaD). Mas, a estrutura de um sistema de ensino – e, mais ainda, de um sistema educacional – tem que ser definida em vista da situação e da configuração correntes na realidade em que existe.
De um ponto de vista sociológico, hoje, o sistema escolar é um sistema especializado ao qual a sociedade tem que confiar a tarefa da educação sistemática das novas gerações. A escola e o processo de escolarização formal por ela desenvolvido têm como condição específica, sobretudo, a interação entre estudantes e professores. A eficiência e a eficácia das ações de fato educativas estão relacionadas com o grau de consciência e de racionalidade na condução do processo, donde decorre, para os professores, a necessidade de uma nítida compreensão de sua natureza como garantia do claro conhecimento de seus requisitos e exigências, de suas possibilidades e de suas limitações. Isto implica a necessidade de incluir, na formação do professor, a abordagem sociológica do processo educativo, da qual se espera contribuição essencial na abordagem propriamente pedagógica: discernimento na identificação das metas gerais a serem propostas ou daquelas que permanecem subjacentes à ação do grupo; viabilidade dos fins assumidos, por sua adequação à natureza do processo e aos recursos disponíveis; coerência e efetividade da ação pela compatibilidade com os fins que a desencadearam; e adequação dos efeitos da escolarização aos propósitos que a orientaram. (Cf. FÉTIZON, 1984).
De um ponto de vista filosófico, entendida a educação como veículo da assunção da humanidade pela conquista da autonomia pessoal e constatado o professor como agente externo específico do processo educativo, conclui-se pela importância prioritária de uma formação especializada para o professor, que se subentende atender as condições necessárias, embora não suficientes, aos bons desempenhos: 1) da tarefa que, no sistema, incumbe ao professor; e 2) do próprio sistema escolar face à sociedade que o mantém. Essas duas empreitadas são complexas; o ensino – papel primordial do professor – exige deste um desempenho que não se improvisa, na prática docente, e reclama formação séria e eficiente.
[18] Assim, a educação escolar não ocorre pelas simples circunstâncias sócio-culturais em ação na escola – logo, o desempenho do professor não pode ser aleatório, assim como seus resultados não podem ser fortuitos: ambos devem ser frutos de uma formação muito cuidadosa. E ensinar significa, em essência, potenciar a arte de pensar (inata, no ser humano e, portanto, no estudante), de construir concepções claras que se aplicam a experiências de primeira mão, selecionar informações relevantes, testar descobertas – logo, a formação do professor implica a posse do método científico e a capacidade de aumentar a chance de sua transferência para a experiência do educando. Ademais, nenhuma educação sistemática se sustenta sem uma antropovisão e uma cosmovisão consistentes; seu exame, sua crítica e sua constituição competem à formação do professor. (Cf. FÉTIZON, 1984).
De um ponto de vista psicopedagógico, considerando desde a psicologia da aprendizagem à do desenvolvimento e à da personalidade, constata-se que há um conjunto de conhecimentos necessários à orientação do procedimento do docente, face ao educando, e à garantia das condições mínimas daquele “conhecer” a quem se fala, necessário ao diálogo e à adequada condução do processo educativo. Tais conhecimentos devem ser contemplados na formação do professor, e a empreitada exige que tal formação seja presencial, pois trata-se de tarefas de extrema complexidade, envolvendo o desenvolvimento de um instrumental que inclui capacidades e habilidades de conhecimento, compreensão, análise, síntese, avaliação, dentre outras, cuja ausência tornaria lugar comum a persistência de professores – despreparados, desse ponto de vista – na manutenção de meios inadequados ao processo educativo, sem que estes sequer estejam aptos a detectar sua própria inadequação aos fins que eles mesmos selecionaram ou propuseram. (Cf. FÉTIZON, 1984).
De um ponto de vista metodológico, cabe lembrar que, na interação presencial entre professor(es), estudante(s) e objeto(s) de conhecimento, é comum ocorrer situações nas quais se pode constatar a inconveniência (fundamentada) da manutenção de determinados saberes e, muitas vezes, é preciso quase que alquebrar as convicções que os estudantes ainda consideram válidas, pois estes são fiéis escudeiros daquelas, enquanto elas ainda os satisfazem, ou seja, enquanto elas ainda lhes parecem fornecer respostas satisfatórias. Tais situações são muito importantes nos processos de ensino e de aprendizagem e ficam praticamente inviabilizadas em ambientes “virtuais”. Afora isso, o estímulo à observação, à formulação de hipóteses, à desestabilização, à equilibração, à reelaboração de conceitos – estímulo esse impregnado por aspectos afetivos e solidários – é um desafio constante no processo educacional. Processo este que é permeado pelo brilho-opacidade dos olhares, pela ginga dos que buscam, pelo sorriso maroto dos que encontram, pela fruição individual e coletiva do apreendido, resultando na aquisição, pelos estudantes, de autonomia para formular leituras de mundo e atuar como sujeitos históricos, e, pelos professores, de efetivação do seu compromisso profissional, mas também humano. Tal dimensão é intrínseca ao ensino presencial e estaria descartada no EaD, assim como, em tese, também estariam sendo descartados os próprios professores. (Cf. MINTO e SILVA, 2001).
Assim, pelos motivos já explicitados, a formação inicial tem que ser, necessariamente, presencial.
[19] E por formação inical entendemos aquela promovida pelo processo da
[...] educação como instrumento de formação ampla, permitindo a todos os seres humanos um desenvolvimento que respeite plenamente sua potencialidade, em especial no que se refere à capacidade de leitura crítica do meio natural e social em que vivem, assim como um real domínio do acervo de conhecimentos já produzidos pela sociedade (continuamente preservadas as especificidades e limitações inerentes às respectivas faixas etárias), permitindo a produção de novos saberes a partir da crítica daquilo que já se constatar incompleto ou ultrapassado. Em outras palavras, essa formação deve garantir todas as condições para que as pessoas possam atuar como seres críticos, construtores de sua própria cultura, de sua história e da sociedade em que vivem, pessoas que sejam progressivamente livres e solidárias, que desenvolvam valores e atributos inerentes à cidadania e que ajudem a construir uma sociedade cada vez mais livre, democrática, justa e igualitária. (ADUSP, 2005).
Dessa forma, insistimos, se pretendemos que as atividades didáticas sejam efetivamente formadoras, elas devem ser desenvolvidas na forma presencial: desde a educação infantil, o ensino fundamental, o ensino médio, o ensino de graduação (licenciatura e bacharelado), até o ensino de pós-graduação (mestrado e doutorado). Vale dizer, a qualquer tempo:
A formação do educando exige relações dialógicas presenciais, para que o professor estimule a reflexão, possibilitando o questionamento, a problematização, a constatação e a superação de contradições, a constante motivação e o crescimento progressivo do educando a partir da vivência de experiências efetivamente socializadoras. Todas essas dimensões ficam extremamente prejudicadas, se não impedidas, quando da adoção da [Ed.aD/do] EaD na formação. É dessa interação presencial que resultam os saberes socialmente referenciados, sendo essa vivência essencial, sobretudo na formação de docentes, mola-mestra para a continuidade deste ciclo virtuoso. (ADUSP, 2005).
À guisa de conclusão, recuperamos o mote colocado em epígrafe, para dizer que, no caso do tema em discussão, nossa resposta a “O que é?”, sem dúvida, trata-se do Ensino a Distância que, “segundo a perspectiva a partir da qual o apreciamos”, jamais pode ser confundido com Educação, assim como, também, não é oportuno confundi-lo com a mera utilização de técnicas/tecnologias – modernas ou não – de informação e comunicação, mas que deve ser usado, sim, como rica alternativa complementar nas situações de ensino presencial e como opção viável, se bem estruturado e conduzido, na “formação contínua ou continuada”. Quanto ao fato de que “as respostas às nossas perguntas podem sempre diferir umas das outras, embora diversas delas (ou todas) possam ser, eventualmente, válidas”, ponderamos ser necessário discernir a adoção do EaD, como política pública, pois, ao mesmo tempo em que tal adoção é uma “resposta válida”, nos casos de “complementação de aprendizagem; ou em situações emergenciais” (Cf. § 4º, do artigo 32, da LDB/1996), não é uma “resposta válida” para a formação – em especial e sobretudo – de professores. Daí, propormos que se adote uma espécie de “cláusula de barreira”, para impedir que governos incautos tentem adotar, como política pública, a educação sistemática a distância.

Referências
ADUSP (Diretoria da). Educação a Distância: a pá de cal na Formação? In: Conselho do ANDES-Sindicato Nacional (CONAD), 50, Fortaleza/CE, 15-17 jul. 2005. Caderno de Textos. Fortaleza/CE: ANDES-SN, 2005, Texto n° 17.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. (05 de outubro de 1988). Diário Oficial da União n° 191-A. Brasília/DF, 05 out. 1988.
______. Lei n° 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Diário Oficial da União. Brasília/DF: Gráfica do Senado, n° 248, p. 27833/41, 23 dez. 1996.
______. Decreto n° 5.622, de 19 de dezembro de 2005. Regulamenta o art. 80, da Lei n° 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Diário Oficial da União. Brasília/DF, 20 dez. 2005.
______. MEC. Portaria n° 4.361, de 29 de dezembro de 2004. Dispõe, dentre outras questões, sobre os procedimentos para credenciamento e recredenciamento de instituições de ensino superior para oferta de cursos superiores a distância. Diário Oficial da União. Brasília/DF, Seção I, p. 66-67, 30 dez. 2004.
______. MEC/CNE/CES. Resolução n° 1, de 03 de abril de 2001. Estabelece normas para o funcionamento de cursos de pós-graduação. Diário Oficial da União, Brasília/DF, Seção 1, p.12, 09 abr. 2001.
______. MEC/CNE/CES. Resolução n° 24, de 18 de dezembro de 2002Altera a redação do parágrafo 4°, do artigo 1°, e o artigo 2°, da Resolução CNE/CES n° 1/2001, que estabelece normas para o funcionamento de cursos de pós-graduação. Diário Oficial da União, Brasília/DF, Seção 1, p. 49, 20 dez. 2002.
______. MEC/SEED. Referenciais de Qualidade para Cursos a Distância. (junho de 2003). Apresentação de Carmen Moreira de Castro Neves, Diretora de Política de Educação a Distância. Brasília/DF: Ministério da Educação, Secretaria de Educação a Distância, 02 abr. 2003 (mimeo.).
CALLIGARIS, Contardo. Outdoors ou não. Folha de S. Paulo, São Paulo/SP,12 out. 2006. Cad. E, p.14.
DIAS, José Augusto. Ensino a distância para quê?. São Paulo/SP, maio de 2005 (mimeo.).
FÉTIZON, Beatriz Alexandrina de Moura. Educar Professores? (Um questionamento dos cursos de Licenciatura da Universidade de São Paulo). (Publicação de 1984). Dissertação de Mestrado. São Paulo/SP, FE-USP, 1978, 229 p. (Série: Estudos e Documentos, v. 24).
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MINTO, César Augusto e MURANAKA, Maria Aparecida Segatto. Políticas públicas para a formação de profissionais em educação no Brasil. Universidade e Sociedade, Brasília/DF, Ano XI, n. 25, p. 134-143, dez. 2001.
OLIVEIRA, Erson Martins de. Educação a distância: a velha e a nova escola. Revista PUCviva, São Paulo/SP, Ano 6, n. 24, p. 92-113, jul./set. 2005.
[1] Docentes vinculados ao Departamento de Administração Escolar e Economia da Educação (EDA), da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FE-USP), estando Beatriz já aposentada. Agradecemos as contribuições de: Lalo Watanabe Minto, Marília Leite Washington, Nobuko Kawashita e Rubens Barbosa de Camargo.
[2] Usamos a sigla Ed.aD quando nos referimos à Educação à Distância e EaD quando nos referimos ao Ensino à Distância. Ao analisar os textos legais, mantivemos suas menções originais, mas consideramos imprópria, quase sempre que utilizada, a expressão “Educação a Distância”. Voltaremos a esse assunto mais adiante.
[3] Se prevalece tal idéia, por decorrência, ela pode induzir, por exemplo, uma outra: a de que o defendido por seus opositores é antidemocrático, anacrônico e inoportuno, o que seria muito nefasto, do ponto de vista social. Esse é um dos motivos pelos quais é preciso minimizar os efeitos das ideologias que permeiam tal discussão.
[4] Cabe aqui uma distinção: de atividades didáticas, pode decorrer, ou não, aprendizagem. Mas, se não houver aprendizagem, não terá havido ensino (embora possa ter havido, efetivamente, alguma atividade didática).
[5] Vale dizer: o que chamamos aqui de “ponto de vista mais amplo”e “ponto de vista individual” expressam dimensões de um mesmo processo, que é social. Dada a configuração da sociedade, hoje capitalista, entendemos que, pelo menos no curto prazo, a única educação que pode propiciar formação é a escolarização formal organizada e mantida pelo poder público.
[6] Ocorrências tais como: aparecimento de problemas e/ou questões que exigem esclarecimento e/ou intervenção; surgimento de hipóteses a partir de outras percepções advindas das correlações entre as diversas ordens de conhecimento; aperfeiçoamento de instrumentos e demais recursos de pesquisa, fruto do aperfeiçoamento de técnicas e invenções que respondem a novas demandas de: explicação e/ou solução de problemas de toda ordem, tais como os postos pelas novas formas de convivência social, dos meios de comunicação e pela abertura de fronteiras entre povos e nações, de novos estados e/ou nações; etc..
[7] Tais documentos constam do sítio eletrônico do Ministério da Educação (MEC), Secretaria de Educação a Distância (SEED), como sendo os que definem as bases legais para a “Regulamentação da EAD no Brasil”. É curioso que não se mencione a peça importante de planejamento que é o Plano Nacional de Educação (Lei n° 10.172/2001), cuja seção 6 trata de “Educação a Distância e Tecnologias Educacionais”, mas não desconhecemos que boa parte de seus dispositivos foram contemplados na legislação citada, que analisaremos em seguida. Talvez isto explique a omissão do referido PNE.
[8] A CF/1988 (Capítulo III – Da Educação, da Cultura e do Desporto; Seção I – Da Educação) dedica dez (10) artigos (205 a 214) à área, sendo a educação, para além das menções nos títulos citados, mencionada explicitamente apenas nos artigos 205, 208 e 214; nos demais, prevalece a referência ao ensino, por certo com o significado de “educação escolar”, conforme melhor especificado na LDB.
[9] Apesar de não discordarmos dos critérios admitidos pelo autor para a utilização do EaD (“em regiões onde não há vagas, ou há grande deficiência de vagas”), mesmo assim, cabe lembrar que qualquer eventual adoção do EaD deve estar acompanhada de um planejamento educacional efetivo, de forma a prevenir que a falta de vagas em cursos presenciais, ou sua insuficiência, continuem a acontecer.
[10] Repare-se que aqui já são mencionados cursos e não apenas programas.
[11] Cabe esclarecer os significados atribuídos pelos seus idealizadores a essas siglas: PEC – Projeto de Educação Continuada; FOR/PROF – Formação de Professores.
[12] Tais questionamentos levantam problemas, ou simplesmente omissões, que um texto oficial não deve suscitar. Tratando de assunto correlato, Contardo Calligaris adverte: “[...] a complexidade das regulamentações é, tradicionalmente, um convite à corrupção; quando ninguém sabe direito o que pode e o que não pode, alguém acaba pagando para que o deixem em paz.” (“Outdoors ou não”, Folha de S. Paulo, 12 out. 2006, Cad. E, p. 14).
[13] Embora tal artigo refira-se apenas e tão somente aos ensinos fundamental e médio a distância.
[14] Por certo, o Decreto (Presidencial) é superior à Portaria (Ministerial), mas não é lícito ignorar que ambos devem guardar coerência entre si e, ademais, que o “equilíbrio hierárquico” é delicado e complexo. No caso do ensino universitário, por exemplo, há necessidade, também, de regulamentação pela própria universidade que, sendo autônoma, mas não soberana, deve se coadunar, por conseguinte, com os Decretos e as Portarias sobre a matéria.
[15] Conforme citado na própria “página inicial” da Secretaria de Educação a Distância (SEED), no sítio do MEC: http://portal.mec.gov.br/seed/index.php?option=content&task=vie...
[16] Artigo 1º, §1º, da Resolução CNE/CES nº 1/2001: “A autorização, o reconhecimento e a renovação de reconhecimento de cursos de pós-graduação stricto sensu são concedidos por prazo determinado, dependendo de parecer favorável da Câmara de Educação Superior do Conselho Nacional de Educação, fundamentado nos resultados da avaliação realizada pela Fundação Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES e homologado pelo Ministro da Educação.”
[17] Pois tudo comporta ensino – inclusive atividades muito mais rendosas do que aquelas para as quais o nosso sistema de ensino – que é educacional – prepara. A título de exemplo: ensinar a desviar, com competência, recursos públicos ou privados, sem deixar traço que possibilite eventuais punições legais, preparará o estudante para profissão muito mais rendosa do que de dar aulas, atender a acidentados, construir casas etc.. O exemplo pode parecer extremado, mas revela, de forma contundente, a necessidade de critérios éticos nessas questões.
[18] Em outras palavras, a efetividade da ação educativa que a escola desenvolve depende da capacidade dos professores para: avaliar objetivamente a viabilidade dos fins e discernir o alcance e os limites dos recursos disponíveis; selecionar metodologias compatíveis com a natureza do processo e com os fins assumidos como viáveis; e para utilizar corretamente tais metodologias. (Cf. FÉTIZON, 1984, p. 85).
[19] A rigor, do ponto de vista conceitual, formação dispensa o acompanhamento de qualquer adjetivo que denote cronologia, pois trata-se de um processo ininterrupto; assim, mantivemos o inicial só para diferenciar formação daquilo que atualmente se denomina de “formação contínua ou continuada”. Ou seja, defendemos que só faz sentido falar em formação continuada ou contínua – que pode ser provida por EaD bem estruturado e conduzido – se, antes, tiver sido garantida a formação presencial, de boa qualidade, em todos os níveis da educação formal.

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